E, se eu não for
um super-herói?
E, se eu for o vilão?
(Stephenie Meyer)
Capitão Y respirava com raiva. "Esses idiotas não fazem nada direito, como vão conseguir fazer um atentado desse jeito?" — pensava. Y já tinha passado dos 30, sua pele carregava as marcas de uma acne severa, os cabelos castanhos escuros eram finos e já possuíam entradas indicando sua idade. Mas seus traços estavam escondidos pela balaclava, assim como os de seus seguidores adolescentes. Os jovens amarrados só viam seus olhos castanhos escuros com olheiras marcadas através dos buracos para os olhos no tecido preto grosso.
Esse seria o primeiro passo para o seu plano triunfal de terror. As pessoas precisavam conhecer a dor que ele sentira quando era adolescente: todo o desprezo, os olhares de nojo para suas espinhas, os comentários maldosos das meninas sobre sua aparência... TUDO! Ele queria que todo mundo experimentasse sua dor, como outros vingadores já haviam feito. Apenas pela dor as pessoas iriam entender. E, depois, se não desse para fugir, ele tiraria sua vida. Seria mais um herói. Um herói dos esquisitos, dos rejeitados.
Não foi difícil recrutar seguidores quando decidiu começar seu grupo de renegados. Em todo lugar tem aqueles de quem ninguém quer contato. Em todo lugar tem meninos sendo humilhados por mulheres. E todos eles estão putos e sedentos por um líder, sedentos para fazer alguma coisa. Cada dia mais, as feministas tiravam o poder dos homens e os castravam ao bel prazer. Nada era mais como nos velhos tempos, e os homens, antes chefes de família e donos da sociedade, agora eram humilhados.
A cidade de Borubo era o lugar perfeito para começar a série de ataques que estava planejando. Um centro comercial do interior paulista, a cidade era grande o suficiente para ter as três principais emissoras de televisão do país, mas não tão grande para ter uma tropa de choque treinada. Além disso, havia múltiplas escolas particulares, muito parecidas com a que ele havia estudado quando jovem, o palco do seu sofrimento. Ele sabia que poderia ter alguém na cola deles, mesmo com os códigos e o cuidado com quem deixavam entrar no grupo no Discord, alguém infiltrado poderia passar. Por isso, precisavam ter mais de uma opção de lugar no planejamento e só decidir na última hora, evitando que fossem pegos.
Capitão Y sentia uma ansiedade no peito, um formigamento que lhe indicava que logo sua vingança iria se concretizar. O cinema era o primeiro passo. Foi fácil entrar pela entrada dos funcionários do shopping e desembocar logo dentro do cinema. Ninguém realmente vigia esses lugares. Era uma quinta-feira, e apenas adolescentes podem ir ao cinema em uma quinta-feira à tarde. Eles se esgueiraram pela entrada de funcionários, escondendo as armas em suas mochilas, usando moletons com capuzes cobrindo os rostos e também balaclavas. Quando um segurança chegou, já era tarde demais. Rapidamente, o renderam e o amarraram. Mas o segurança não era seu alvo; queriam os jovens. Eles tinham que pagar, só através da dor eles iriam entender como ele se sentia. Só pela dor a sociedade toda iria entender.
Sala 4, aquela que exibia algum sucesso adolescente, alguma coisa nojenta com aventura e romance que arrancava dinheiro de todo mundo. Entraram rapidamente e ele gritou, de acordo com o plano:
— Mãos ao alto!
No início, eles duvidaram do que estava acontecendo, deviam achar que era alguma ativação de marketing do shopping ou algo do tipo... típico de uma geração que cresceu sem problema nenhum, sem medo de nada. Mas logo Y33 foi até eles e deu uma coça em um deles com o cano de sua arma, e então a coisa começou a ficar mais séria. Uma menina tentou fugir, mas Y35 a pegou rapidamente. Em questão de 5 minutos, estavam todos amarrados juntos em frente ao grande telão da sala de cinema. Um dos funcionários do shopping foi ver o que estava acontecendo, mas deixaram ele fugir para que ele avisasse as autoridades. Estava tudo de acordo com o plano. Hoje seria o primeiro dia da vingança que tanto ansiava.
*
Carine estava imóvel, o coração batendo forte. As memórias daquele dia sangrento voltavam em flashes quando o poder de Lolis — que a acalmava — titubeava. Apesar de poderosa, a amiga ainda era humana; seu escudo de emoções também oscilava junto com seus sentimentos. Lolis, ao seu lado, podia sentir cada centelha de pânico que emanava da amiga. Mas elas precisavam agir,e rápido, antes que ele começasse…
Lolis segurou a mão de Carine com força, puxou-a e gritou:
— Ei, panacas! Aqui!
Y rapidamente achou que se tratava de outros dois adolescentes e mandou que Y33 os pegasse.
— Pega essas duas merdinhas também! Atira nelas se for preciso.
— Sim, capitão!
A única coisa que impedia Carine de perder o controle era Lolis. Pela conexão mental, ela entendeu o que precisava fazer, mas não tinha certeza se conseguiria. "Eu não posso... e se acontecer de novo? E se... eu perder o controle?" Carine repetia freneticamente em sua mente. Memórias do dia em que ela destruiu toda a sua escola, movida pela raiva, pelo medo, pela humilhação, pela culpa, ainda a atormentavam.
"Você não é aquela pessoa mais. Eu estou aqui com você. Nós podemos impedir isso juntas!" — Lolis transmitiu cada palavra de encorajamento pela conexão mental para Carine e fechou os olhos, concentrando-se em acalmar a mente da amiga, projetando uma onda de serenidade com toda a força restante que tinha. Ela sentiu a resistência de Carine diminuir, enquanto a ansiedade cedia lugar à determinação.
As vozes dos sequestradores e o murmúrio assustado dos reféns ecoavam pelo cinema, mas tudo parecia se distanciar. Carine respirou fundo uma última vez antes do mundo parar. "Isso, Carine... você consegue," Lolis sussurrou em sua mente, sentindo o poder da amiga tomando forma como espirais de vento por toda a sala de cinema.
Y33 percebeu o movimento e deu um passo à frente, mas, antes que pudesse fazer qualquer coisa, Carine ergueu a mão e, com um simples pensamento, lançou-o contra a parede. Y35 tentou reagir, mas Carine o desarmou com um movimento rápido, jogando sua arma para o lado e prendendo-o no lugar com as cadeiras que ela controlava. Capitão Y ficou em choque, olhando para Carine, mas também foi arremessado, bateu a cabeça em uma cadeira que voava no ar junto e logo caiu no chão, desmaiado.
Em questão de segundos, os sequestradores estavam imobilizados. A tensão na sala diminuiu, e Carine, suando, soltou um suspiro de alívio. Os adolescentes amarrados ainda estavam em choque, sem entender como aquilo havia acontecido.
— Rápido, agora é sua vez — Carine disse para Lolis em sua mente.
Lolis correu até Y33 e Y35, tocando a testa de cada um deles, enviando um fluxo de energia telepática.
— Vocês não vão se lembrar de nada disso... — ela murmurou, apagando as memórias recentes dos dois. Quando terminou, eles estavam completamente inconscientes. Os adolescentes amarrados, que não haviam sido amordaçados, ainda continuavam gritando, mas agora de emoção, incentivando as garotas:
— Porra, são as porra de umas super-heroínas que nem nos filmes da Marvel!
Então, ao se aproximar de Capitão Y, algo inesperado aconteceu. Assim que Lolis tocou sua testa, ele abriu os olhos, olhando diretamente para Carine. A onda de ódio que veio da mente de Capitão Y fez Lolis recuar por um instante, e foi tudo o que ele precisou para se esquivar o mais longe que conseguiu da telepata.
— Eu sabia! — ele gritou com uma voz rouca e ensandecida, enquanto dava um sorriso bizarro digno do Coringa — Eu sabia que te reconhecia!
Carine ficou paralisada.
— Do que você está falando?
— Dez anos atrás. Você matou todos os seus colegas de escola porque eles te torturaram. Você é como eu! No início, achei que as histórias sobre você eram mentira, uma fanfic da internet. Você desapareceu depois daquele dia e começaram a surgir todo tipo de especulação, depois que sua mãe também apareceu morta em sua casa queimada.
Lolis deixou aquele maluco continuar falando, enquanto se aproximava lentamente para tentar apagar sua memória. Mas, quando ela estava quase perto o suficiente, mais cadeiras do cinema começaram a voar em círculos com força. Ela olhou para trás e viu Carine paralisada, com lágrimas nos olhos, em choque e... perdendo o controle.
— Nós somos fruto da mesma árvore, Carine. Passamos por toda a dor de sermos os excluídos. Você também sabe que a única forma de acabar com isso é pela dor. Essa dor aí que você tá sentindo. As pessoas precisam sentir o que sentimos. Seu poder... ele é a arma perfeita. Foi dado a você por um motivo. Está na hora de todos pagarem!
As cadeiras girando estavam mais frenéticas e um pedaço de acento acertou Lolis a fazendo cair de joelhos.
— Se junte a nós, Carine. Eles nunca vão parar. A sociedade é cruel com quem é diferente, e você sabe disso. A dor é a única coisa que os faz entender. Você não fez nada de errado naquele dia. Você se defendeu. Você fez o que era natural. Um animal machucado que não pode fugir: ataca, é a única opção!
Carine sentia seu corpo petrificado, era como se sua alma tivesse saído do corpo, ela tinha consciência de tudo ao seu redor: as cadeiras, pipocas, refrigerantes, tudo girando acima de sua cabeça enquanto Capitão Y recitava seu discurso coringado e Lolis… ah Lolis tinha se machucado! Ela tinha machucado Lolis! Ela estava caída de joelhos! Ela sabia que isso ia acontecer, que ia perder o controle!
— Não o escute, ele está mentindo, você não é como ele!! - Lolis colocou a mão no ombro de Carine e gritou em sua mente e também com sua voz.
Capitão Y soltou uma risada lunática e aguda com olhos fixos em Carine:
— Pense bem, Carine! Você pode ser uma heroína dos rejeitados, uma líder. O mundo precisa de pessoas como nós para ensinar o que o sofrimento realmente significa. O mundo vai nos temer e aprender com seus erros!
Carine fechou os olhos, bloqueando o som da voz de Capitão Y. Ela sabia que ele estava errado. Sabia que ela não era aquela pessoa mais. Ainda assim, a dúvida plantada por ele ressoava em seu coração.
—Lolis, apague a memória dele. — Carine finalmente disse, com a voz firme.
Lolis correu na direção de Capitão Y, mas já estava fraca de tando usar seu poder e lenta demais e não conseguiu pegá-lo, Carine tentou segurá-lo também com as gavinhas da sua mente, mas ele já estava longe demais. Mas elas ouviram ao fundo um grito de uma voz grave:
PARADO AÍ! POLÍCIA!
A polícia havia chegado, Lolis tinha que ser rápida e apagar a presença delas da mente dos jovens se não seriam descobertas. Ela caminhou até eles e um por um foi retirando essa memória. A cada um deles ela parecia mais cansada, seus olhos afundaram, sua boca estava seca, mas ela sabia o que precisava ser feito. Carine a observava em silêncio tentando não atrapalhar. Quando chegou no último adolescente, aquele que era fã de super-heróis ele tentou negociar:
— Não precisa me apagar, você já tá muito cansada, eu não vou contar nada sobre vocês.
Lolis sabia que não podia arriscar e com sua última centelha de força psíquica deixou o adolescente desacordado e torceu para que tivesse dado certo.