Algumas coisas a gente
ouve com os ouvidos.
Outras ouvimos
com o coração.
(Sarah J. Maas)
Dois dias depois, Lolis acordou. Enquanto ela se recuperava de ter drenado toda a sua energia para apagar a mente de umas quinze pessoas, a cidade de Borubo ia à loucura. O incidente no cinema ficou conhecido como "Quase massacre da sala 4" e estava nas manchetes de todo o país. Debates acalorados sobre a redução da maioridade penal pipocavam nos canais sensacionalistas de TV aberta, já que os políticos oportunistas que se alimentavam do ódio e da ignorância viram na apreensão do Y33 e do Y35 de 15 e 16 anos, respectivamente, uma oportunidade de crescer nas pesquisas eleitorais.
Na verdade, seus verdadeiros nomes eram Enzo e Joaquim e ambos haviam fugido de casa a cerca de uma mês para se juntar ao grupo de Capitão Y, conhecido nas redes como Capitão. Os garotos foram interrogados diversas vezes e embora se lembrassem de ter chegado ao cinema e planejassem matar todo mundo que estivesse na sessão de cinema para supostamente se vingar do bullying que sofriam na escola, não conseguiam saber como que desmaiaram. Lolis havia conseguido apagar suas memórias com sucesso.
Ao que parecia, a polícia havia especulado que o líder do grupo deveria ter usado um gás tóxico ou algo do gênero para deixar todo mundo desacordado e matar não só os jovens que assistiam à sessão, mas também seus seguidores - que também eram adolescentes - e ingênuos, não percebendo o perigo óbvio de se juntar a um grupo de ódio de um maluco na internet.
Outros líderes mais conscientes, mas não menos oportunistas, propuseram campanhas acaloradas sobre os males do bullying nas escolas, algumas até mesmo citando um certo caso de dez anos atrás…
Lolis primeiro sentiu algo fofinho se esfregando no seu rosto e começou instintivamente a acariciá-lo, sem pensar muito bem onde estava ou como foi parar alí. Lentamente ela foi tomando consciência e abriu os olhos com dificuldade e exclamou:
— Puta merda!! - O barulho da sua voz acordou Carine que tinha dormindo na poltrona ao seu lado com um livro nas mãos.
— Lolis você acordou!!!! Eu fiquei com medo de te levar ao hospital e achei um telefone no seu bolso e liguei pra ele e ele me ajudou!
— O Jef? Tu ligou pro Jef? - ela parecia achar graça na situação toda e não que esteve desacordada por dois dias, pensava Carine indignada.
— Eu tava desesperada! Depois que o tal Capitão fugiu e a polícia foi atrás dele, nós escapulimos pela entrada dos funcionários e você já não estava falando coisa com coisa e duas ruas depois desmaiou!
— Faz sentido, isso costuma acontecer se eu.. é.. uso muito minha mente.
*
Após se recuperar, Lolis estava movimentando seus contatos para conseguir falar com um dos adolescentes que estavam sob custódia da polícia. Ela precisava descobrir qual era o próximo alvo, qualquer pista seria de extrema ajuda e dessa vez ela estaria mais preparada. Por sorte, pura sorte mesmo ninguém se machucou, não gostava nem de pensar se não tivessem chegado antes das execuções. Agora aquele dia parecia um borrão em sua mente, mas ela sabia que não podia desistir, se não todos os seus esforços teriam sido para nada.
Além da sua investigação, ela tinha uma missão mais importante: conseguir treinar Carine o bastante para que ela não perdesse o controle novamente, isto é… se ela deixasse.
*
Carine ajustou o capacete de maneira desajeitada, o coração disparado enquanto observava Lolis subir na moto com uma facilidade natural. Como havia aceitado essa loucura? Ela nem sabia para onde estavam indo. O ronco estridente da vespa vermelha de Lolis ecoava na garagem de concreto, e o sorriso da detetive, sempre cheio de confiança, fez com que ela ficasse um pouco menos nervosa. Afinal já haviam lutado até contra bandidos juntas, um passeio de moto não era nada, não é?
— Vai ser divertido, prometo. — Lolis disse, virando a cabeça para olhar Carine. Seus olhos brilhavam, refletindo a luz fraca do entardecer. — Confia em mim, Ginger girl.
— Eu confio, só que... eu nunca andei de moto, ou confio em alguém. Minha mãe dizia que motos eram instrumentos de matar de satanás.
Lolis deu uma risada gostosa depois dessa informação. Pelo que lembrava da mente de Carine o trauma da criação extremista religiosa ainda era algo latente, mas ficava feliz que ela conseguia trazer fatos como aquele como se fossem piadas. Ela fazia muito isso… Usar o humor para esconder a dor sobre seu passado e Lolis achava uma maneira corajosa de lidar com isso. Não se pode ter medo do que você ridiculariza, não é mesmo?
Carine subiu na garupa, as mãos hesitantes pairando no ar antes de agarrar finalmente a cintura de Lolis com força. A detetive usou seu poder para transmitir aquela calmaria que sabia que a garota precisava, mas só um pouquinho, ela precisava se concentrar na estrada.
Quando a moto acelerou, o vento bagunçando os cabelos loiros alaranjados de Carine que escapavam do capacete, ela fechou os olhos por um momento, sentindo a liberdade e a excitação de andar de moto. A mãe dela estava certa realmente… Aquela adrenalina só pode ser do diabo. Lolis sempre tinha uma forma de acalmá-la e também desafiá-la ao mesmo tempo, fazendo com que ela saísse da sua zona de conforto, mesmo quando não estava usando seu poder de telepatia. Ela tinha um pequeno palpite do que envolvia aquele pequeno passeio surpresa. Com certeza Lolis ia arranjar um jeito de fazer ela praticar seus poderes. Embora não gostasse daquilo, ela sabia que era necessário, não queria perder o controle de novo. Ela não era como aquele cara, não podia ser. Ele estava errado. Ela ia provar para ele que ele estava errado.
A moto parou em frente a um ferro-velho na beira da via expressa no meio do nada. O lugar parecia esquecido pelo tempo, o tipo de lugar que você levaria um corpo para desovar se tivesse um. Afastou aquele pensamento intrusivo. Não queria ver nenhum corpo mais na sua vida. Já tinha visto corpos o suficiente para toda uma vida, talvez duas.
Havia pilhas de metais enferrujados, carcaças de carros, e uma sensação de isolamento que fazia o lugar parecer o cenário da série The Walking Dead, mas estava com Lolis, ela a protegeria, ou melhor: ajudaria ela a proteger as duas, já que a cada dia Carine tinha mais consciência de como o seu poder podia ser sua maior proteção e não seu maior inimigo, seu maior medo, seu maior castigo.
— Vamos? — Lolis desceu da vespa com facilidade, sorrindo para Carine com aquele olhar confiante e brilhante. — Aqui é perfeito. Ninguém para nos ver, e, se você destruir algo, bom... é só ferro velho.
— Eu sabia que íamos acabar fazendo algo assim…
— Eu sabia que você sabia. Vamos?
Carine riu, nervosa, mas a presença de Lolis ao seu lado tornava tudo um pouco menos intimidante. Juntas, caminharam até o centro do terreno, onde uma pilha de pneus velhos estava amontoada.
— Começamos com algo simples, ok? — Lolis indicou os pneus. — Quero que você mova um deles. Só um. Sem pressão.
— Vai me dar uma mãozinha?
— Sem mãozinha hoje. Só se você precisar… Mas acho que esse pneu velho não vai te irritar se não eu mato ele, deixa comigo. Carine riu com o comentário. Era isso que Lolis queria, que ela relaxasse. Tudo seria mais fácil.
Carine respirou fundo. Ela tentou afastar da sua mente todos aqueles sentimentos ruins, as memórias vermelhas, o sangue, os corpos, focar no aqui e no agora. Em Lolis. No menino que salvou. No seu gato cabeçudo. Na sua amiga Laura. Em tudo que ela amava. Ela estendeu a mão na direção dos pneus e sentiu aquela familiar corrente de energia correr por seu corpo. Esticou as gavinhas de poder da sua mente até agarrá-lo com seus tentáculos mentais e o segurou levitando no ar.
— Irado! - exclamou Lolis.
Ela sentia uma alegria quase infantil, algo que não experimentava há muito tempo. Ou será que um dia experimentou? A culpa era regra na sua casa. Um bom cristão não pode ter prazeres. Prazer é um pecado. Se você gostar demais de algo, isso é um pecado. Tudo que é bom é um pecado. A voz da mãe a perseguia, mesmo morta ela a censurava, tolhendo cada resquício de alegria que podia ter. O pneu caiu de volta na pilha junto dos outros.
— Inferno! Eu não consigo me concentrar! Você não entende!
— Ginger eu já estive dentro da sua cabeça, lembra? Eu entendo sim, manda essa merda toda pro caralho, você é muito mais poderosa que isso! É foda pra caralho! Não deixa o teu passado controlar quem você é hoje. Agora, vamos tentar algo mais divertido. — Lolis disse, o sorriso malicioso. Ela pegou um pedaço de madeira do chão e a jogou para Carine. — Quebra isso. Vai, libera essa tensão toda! A gente merece quebrar umas coisinhas. — Rapidamente Lolis acha um pedaço de ferro e bate no vidro de uma carcaça antiga de carro próxima a elas, fazendo um barulho estridente. — TOMA! — ela grita.
Carine hesita por um segundo, mas ela tem muita tensão acumulada para liberar e decide comprar a ideia. Lolis parece estar se divertindo… até demais. Ela se concentra naquele pedaço de madeira estendendo as garras da sua mente uma de cada lado da madeira e força com o poder da mente e… CRECK! Um riso de surpresa escapou de seus lábios.
— Isso aí, Ginger!!! Sabia que você ia conseguir. Foda!!!
Depois de quebrar aquela madeira, Carine gritou com todos os seus pulmões:
— TOMA ESSA!!! — ela levantou uma carcaça inteira de um cadete antigo e arremessou para longe e aquilo foi incrível! Ela se sentiu incrível pela primeira vez… pela primeira vez em anos.
É claro que Carine se sentia bem contando uma boa fofoca com Laura ou até mesmo feliz quando criava uma peça nova juntando parte de roupas que havia garimpado em brechós, mas aquilo, aquilo era algo que ela nunca havia experimentado, era como se toda a sua essência estivesse entrando em equilíbrio. Ela olhou para Lolis com gratidão, sabia que não teria conseguido sem ela.
— Você está indo muito bem. — Lolis disse suavemente, seus dedos macios tocaram os de Carine de leve.
— Opa, desculpa, foi sem querer… — disse Lolis soando desajeitada pela primeira vez.