Capítulo 7

A maioria dos homens mais depressa nega uma verdade dura do que a enfrenta.

(George R. R. Martin)Eu 

Lolis observava a tela do celular enquanto a luz suave do fim da tarde entrava pela janela. Fazia dias desde que conseguira invadir a mente de Enzo, um dos suspeitos. As memórias dele ainda estavam frescas em sua mente, rodopiando como um pesadelo repetitivo. Ela repassava em sua mente todas as memórias nojentas que havia lido da mente do Y33. Tinha de ter alguma pista, algo que os ajudasse, e realmente tinha. Juntou as partes da memória do jovem, alguns detalhes que para uma pessoa que não havia vivido toda a vida em Borubo não significariam nada. Mas ela conhecia aquela cidade como a palma da sua mão.

Já passava da uma da manhã quando ligou para Jef. Ele entendeu com a voz ofegante.

— Porra Lolis! É bom você ter um motivo bom pra caralho porque eu tava no meio de um negócio importante aqui com a minha gata.

— E aí, ta afim de pegar uns bostinhas essa semana?

*

Marcaram no relógio as primeiras horas antes do raiar do dia. O comboio da polícia militar se aproximava de um depósito abandonado, localizado na zona rural, longe dos olhares curiosos. Chegaram em silêncio, as luzes apagadas para não levantar suspeitas.

— Equipe Alfa, prepare-se para entrar. — A voz de Jefferson soou firme pelo rádio, coordenando a ação. Ele liderava o grupo de policiais que se aproximava do depósito, com Lolis não muito longe, observando de uma distância segura. Ela não podia estar na linha de frente, mas sua mente já estava focada, pronta para o que pudesse acontecer.

O depósito estava mal iluminado e decadente, com paredes descascadas e janelas quebradas. Do lado de fora, não havia indícios de vida, exceto por alguns veículos velhos estacionados de forma desordenada.

Os policiais se aproximaram em silêncio, armas em punho, movendo-se em formação. Quando chegaram à entrada, a porta de metal foi aberta com um chute forte, e a equipe avançou. Assim que entraram, o cheiro no ar os atingiu como um golpe: suor de adolescente, comida estragada e lixo acumulado. O lugar estava imundo.

— Parece o lixão da mãe Lucinda! — murmurou um dos policiais enquanto varriam a área com lanternas.

Dentro do depósito, as condições eram insalubres. Colchões sujos estavam espalhados pelo chão, com mantas e travesseiros velhos, amontoados como se alguém tivesse feito um acampamento improvisado. Restos de embalagens de fast food estavam por toda parte, com latas de refrigerante e sacos de batatas fritas amassados.

No canto da sala principal, vários computadores gamers, ainda ligados, emitiam um brilho azulado fantasmagórico. As torres de computadores estavam sobrecarregadas, e as telas exibiam fóruns e vídeos cheios de mensagens de ódio. Era o ponto de encontro virtual do grupo, o lugar onde tudo acontecia.

— Ali estão eles. — Jefferson sussurrou, apontando para os cinco jovens que estavam deitados nos colchões, todos parecendo esgotados, sujos, e com olheiras profundas como se não dormissem há dias. Cada um deles havia desaparecido de estados diferentes do Brasil há cerca de seis meses, seus rostos circulando em relatórios de pessoas desaparecidas. As famílias desesperadas e eles lá dando uma de vilão de filme estadunidense…

Jef sabia que aqueles garotos eram apenas peças no jogo, mas ainda eram só adolescentes idiotas e ramelentos, e estavam sendo manipulados por alguém pior. O verdadeiro líder do grupo não parecia estar lá, infelizmente. Mas já esperavam por isso, ele não ficaria naquele lugar horrível. 

A operação foi rápida. Em questão de minutos, os cinco jovens esquisitos e desengonçados estavam algemados e sendo levados para fora do depósito. 

Pareciam zumbis, com a pele pálida de quem não tomava sol há meses. Lolis estava pronta para muito em breve ela iria ter uma conversinha muito próxima com cada um deles. O verdadeiro cérebro por trás do grupo ainda estava à solta, o tempo estava correndo e ela precisava achá-lo antes que desse merda.

*

Um açai tamanho família com muita paçoca, morango e banana era tudo que Carine precisava depois de um longo dia de trabalho no ateliê. Ela precisava muito se distrair, apesar da notícia das novas prisões terem acalmado a população geral, ela sabia que não era o suficiente. O verdadeiro perigo ainda estava à solta, recrutando mais e mais jovens com seu discurso acalorado. Ela sabia o quanto Capitão Y podia ser convincente. Convincente demais.

Estar ali com Laura, trazia uma sensação de normalidade, se é que ela um dia teve isso.

— Então, me conta mais sobre essa detetive. — Laura disse com um sorriso, enquanto mergulhava a colher no açaí. Seus longos cabelos negros estavam alinhados em um lindo rabo de cavalo que balançava enquanto ela falava.

Carine quase engasgou. A pergunta a pegou desprevenida, e ela tentou disfarçar o nervosismo com uma risada curta. Ela sabia que Laura estava curiosa. Desde que havia mencionado Lolis pela primeira vez, sua amiga não havia parado de fazer perguntas. O problema era que Carine não podia contar tudo. A investigação, seus poderes, o passado traumático…

— Ah, ela... é uma amiga.

Laura arqueou uma sobrancelha, claramente desconfiada. Carine sentiu o rosto corar, desviando o olhar. Era verdade, mas não toda a verdade. Havia algo em Lolis que mexia com ela, algo que ia além da simples gratidão por ajudá-la a controlar seus poderes. Mas, como explicar isso sem contar sobre as coisas que mantinha escondidas de todos, inclusive de sua melhor amiga?

— Amiga é? Só isso? Vamos Ca, você não engana. Tá toda boba por ela e vocês estão saindo bastante né? Andar de moto, você disse outro dia, né? Que radical! Tô adorando você explorando seu lado bissexual porque, sinceramente, os caras daqui de Borubo estão piores que os clientes da Costura & Cia.

Carine soltou uma risada, finalmente se permitindo relaxar um pouco. Laura sempre soubera como tirar um peso de seus ombros com uma piada na hora certa. E, de certa forma, era bom poder conversar com sua amiga, mesmo que não pudesse contar tudo. Era bom fingir que podia ter uma conversa normal sobre seus interesses românticos, sem preocupações, sem passado sombrio.

— Sobre isso... Você sabe que eu já tive alguns crushs em garotas antes, né? Mas com Lolis... é diferente. Ela me faz sentir como se eu pudesse ser eu mesma. Ela me acalma de uma forma que eu… não sei explicar. — mentiu, porque Carine sabia exatamente como Lolis a acalmava, mas não podia dizer. Mesmo assim, Laura abriu um sorriso largo, ela estava realmente feliz pela amiga.

— Tava na cara né, não é todo dia que a gente conhece uma detetive gata por aí, na rua, assim do nada! Quem sabe é o destino!

Carine sorriu, sentindo uma leve onda de calor se espalhar pelo corpo. Falar com Laura sobre seus sentimentos por Lolis fazia aquilo parecer mais real. Ela queria poder contar tudo à amiga. Queria explicar o motivo pelo qual Lolis era tão importante, como seus poderes de telepatia e a habilidade de acalmar sua mente faziam toda a diferença. Mas não podia.

— Eu queria poder te contar mais, sabe? — Carine disse, sua voz ficando mais baixa. — Só que tem tantas coisas que eu não posso dizer. Não por enquanto, pelo menos.

— Eu entendo, Ca. Estou feliz de ver você se permitindo. Eu me preocupei tanto com você, todas nós passamos por muita merda, sabe? — Laura parou por um momento, escolhendo as palavras certas — Mas agora você parece... mais viva, sabe? E se a Lolis tem ajudado com isso, eu já gosto dela também.

— Obrigada, Lau — Carine disse suavemente. — De verdade.