Capítulo 9

Nunca se esqueça de quem você é, porque é certo que o mundo não se lembrará. Faça disso sua força. Assim, não poderá ser nunca a sua fraqueza. Arme-se com esta lembrança, e ela nunca poderá ser usada para magoá-lo.

(George R. R. Martin)

Lolis estava em pé no canto da sala de estar de sua antiga casa, a mesma que ela conhecia desde criança. O cheiro de comida queimando invadia o ambiente, misturando-se com o som abafado de um relógio que parecia estar quebrado, marcando o tempo de forma irregular. Ela olhou ao redor e viu sua mãe na cozinha, mexendo nervosamente em panelas, enquanto a pequena Lolis, com talvez seis anos, se encolhia em um canto, apertando um cobertor velho contra o peito. O coração de Lolis batia forte no peito, como se já soubesse o que estava por vir, como se já tivesse vivido aquilo mil vezes.

A porta da frente bateu com violência, o som ecoando pela casa como um trovão. A figura do pai de Lolis entrou, cambaleando, o cheiro forte de álcool preenchendo o ambiente junto com a presença pesada e ameaçadora que ele sempre carregava quando voltava para casa daquele jeito. Ele parecia muito bravo, murmurando palavrões, e Lolis, tanto a adulta quanto a criança no sonho, sabiam o que viria em seguida.

— Cadê você, mulher?! — a voz dele rugiu pela casa, carregada de raiva.

A mãe de Lolis parou por um instante, as mãos tremendo ao segurar a colher, mas não respondeu. Ela sabia que responder só tornaria tudo pior. O pequeno corpo de Lolis no canto se encolheu ainda mais, tentando se esconder da tempestade que estava prestes a desabar sobre elas.

— Tá me ignorando, é?! — Ele cambaleou até a cozinha, derrubando uma cadeira no caminho.

Lolis tentou gritar, queria intervir, queria proteger a mãe, mas estava presa, seus pés colados ao chão, incapaz de se mover. Era como se o pesadelo estivesse manipulando cada parte de seu corpo, deixando-a impotente.

Então, o pai chegou perto da mãe dela, pegando-a pelo braço com brutalidade. A mãe soltou um pequeno gemido de dor, mas manteve o olhar no chão, como se evitasse qualquer confronto.

— Não sou ninguém pra você, é isso? — Ele gritou com o hálito fedendo a cachaça bem próximo ao rosto dela.

Lolis, ainda presa no canto, assistia à cena com lágrimas nos olhos. Mas, algo não estava certo, aquela não era mais uma lembrança do seu passado…

Ela olhou para o homem que segurava sua mãe, e algo estava diferente. A postura, os gestos… Não era seu pai. Lentamente, a figura do homem começou a mudar, os traços do rosto se distorcendo até que ele virou de frente para Lolis.

Ela ofegou de terror. Onde antes estava o rosto familiar de seu pai, agora havia uma figura encapuzada, com uma balaclava cobrindo todo o rosto, exceto pelos olhos frios e calculistas. Era o Capitão Y.

— Você achou que poderia escapar de mim? — a voz dele ecoou pela sala, profunda e sombria, mas ao mesmo tempo, parecia a voz do pai dela, uma mistura aterrorizante dos dois.

Lolis tentou gritar, mas não conseguia. O Capitão Y, com o corpo de seu pai, deu um passo em sua direção, arrastando a mãe dela, que agora parecia sem vida, pendurada em seu braço como uma marionete.

— Você vai ser como ele… — a voz dele continuou, zombando, enquanto se aproximava cada vez mais. — Não importa o que você faça. Você não pode fugir do passado.

De repente, o Capitão Y puxou a balaclava, revelando o rosto horrível e distorcido. Mas, antes que ela pudesse ver claramente, Lolis acordou.

Seu corpo estava suado, o coração martelando no peito. O quarto estava escuro, o único som era sua respiração acelerada. Ela tentou se acalmar, mas o eco da voz do Capitão Y ainda ressoava em sua mente.

Ela olhou para o lado, vendo o relógio marcar 3h da manhã. O mundo real parecia distante, quase irreal depois daquele pesadelo. Mas ela sabia que, de certa forma, aquilo era uma lembrança do passado e um aviso sobre o presente. Sentou-se na cama, passando as mãos pelo rosto e respirando fundo. Ela precisava conseguir alguma pista para encontrar o Capitão Y e rápido.

*

Carine e Laura estavam no shopping, no intervalo do trabalho, aproveitando o tempo para almoçar juntas. Sentadas em sua mesa preferida, o cheiro de comida de fast-food e o burburinho das pessoas estava no seu ápice, pois era meio-dia e pouco. 

Laura falava sobre seu último encontro desastroso com um cara da cidade, e Carine ouvia, rindo de vez em quando, embora a mente estivesse um pouco distante.

— E aí, menina, acredita que ele ainda perguntou se eu podia pagar a conta porque ele tinha esquecido a carteira? — Laura revirou os olhos, empurrando sua salada com o garfo. — Sou bonita demais para pagar qualquer coisa! Nem sei porque trabalho!

Carine riu, era verdade. Laura era muito linda, mas infelizmente ser gostosa não pagava as contas. Mesmo tentando dar atenção para a amiga, ela estava um pouco distraída. A verdade é que, desde o último encontro com Lolis e a mensagem que Exu havia lhe dado, ela não conseguia parar de pensar no perigo que se aproximava. A tensão estava no ar, e por mais que tentasse focar em coisas normais, seu corpo e mente estavam alertas.

— E você, Carine? Como estão as coisas com a tal detetive misteriosa? — Laura perguntou, arqueando uma sobrancelha curiosa.

— Ah, estamos... bem. Rolou um beijo sabe? 

— Até que enfim!! Vocês duas estavam parecendo novela coreana, que demora!

Antes que Carine pudesse se defender, o som da televisão ao fundo chamou a atenção de ambas. O noticiário estava no ar, e a imagem de um repórter em frente a uma delegacia piscava na tela. Ao lado, o emblema da Polícia Federal brilhava em destaque. Carine congelou quando o apresentador começou a falar:

— "Última atualização sobre o caso do misterioso Capitão Y, o líder de um grupo de ódio que tem ameaçado jovens em várias partes do país. A Polícia Federal está em uma operação intensa para identificar sua localização e acredita estar muito próxima de encontrá-lo. Hoje, um novo canal de denúncias foi lançado, incentivando qualquer pessoa que tenha informações sobre o paradeiro do Capitão Y ou seus cúmplices a entrar em contato."

A imagem mudou para um número de telefone, seguido por uma gravação de voz que pedia a colaboração da população. Carine sentiu um calafrio percorrer sua espinha. A voz do repórter parecia distorcida em sua mente, ecoando junto com a lembrança do aviso de Lolis. Eles estavam chegando perto. E isso só podia significar uma coisa: o ataque iminente.

Ela tentou disfarçar, mas Laura percebeu o desconforto.

— Carine, você tá bem? — Laura perguntou, a expressão ficando séria. — Você ficou pálida de repente. Quer dizer… Mais pálida, se isso é possível!

Carine respirou fundo, os dedos apertando com força o garfo que segurava. A notícia havia ativado algo dentro dela, uma urgência que ela não sabia como processar. Ela sabia, com cada fibra do seu ser, que o que Lolis a alertara estava mais próximo do que nunca.

— É... só que essa história toda me deixa nervosa. — Carine tentou sorrir, mas o sorriso não chegou aos olhos. — Sabe, ataques, grupos de ódio... é difícil de ignorar. Eu sofri bullying na escola também…

Laura assentiu, concordando.

— Com certeza, é horrível. Ainda bem que estão perto de pegar esse tal Capitão Y. Mas você parece realmente preocupada, tá tudo bem mesmo? — Laura perguntou, olhando para Carine com uma expressão de suspeita.

Carine olhou para o lado, tentando não transparecer a tempestade emocional que se passava dentro dela. Sabia que não podia contar a verdade, não podia envolver Laura naquele caos. Mas o pânico que subia em sua garganta era incontrolável. O ataque, o grupo... o tempo estava acabando.

Ela precisava falar com Lolis. Agora.

— Desculpa, Laura. — Carine disse, levantando-se de repente. — Eu preciso ir. Lembrei de uma coisa do trabalho. Te ligo depois, tá?

Laura a observou com uma expressão confusa e preocupada, percebendo a mentira, mas achou melhor dar espaço para a amiga.

— Tudo bem, mas se precisar conversar, me liga, ok?

Carine acenou rapidamente e saiu em passos apressados, o coração batendo descompassado no peito. Ela mal conseguia pensar direito, a adrenalina já correndo por suas veias. Pegou o telefone e mandou uma mensagem rápida para Lolis enquanto se dirigia ao estacionamento.

"Lolis, precisamos conversar. Agora. Acho que o ataque está mais perto do que pensávamos." — enviou por mensagem.

Enquanto esperava uma resposta, Carine sentiu o peso da realidade se abater sobre ela com força. Ia acontecer tudo de novo. Em algum lugar, alunos de uma escola inteira seriam assassinados - de novo. E mesmo que não fizesse sentido, ela sentia que tudo era culpa dela.