Capítulo 12

As coisas mais importantes são as mais difíceis de dizer (Stephen King)

A noite anterior havia sido perfeita para Carine que conseguiu esquecer por um instante, mesmo que breve, quem ela era, e tudo que estava enfrentando interna e externamente. Ela acordou se sentindo bem, o máximo bem que podia se sentir. Lolis teve que ir embora cedo, tinha que seguir um possível marido infiel, "eles gostam de voltar antes do pôr do sol" - ela disse. 

Mas logo depois que Lolis foi embora, as lembranças de sua mãe voltaram para a assombrar mais uma vez. A voz áspera dela ressoava em sua mente "impura", "puta de satanás", "fruto do demônio", esses eram só alguns dos termos que a mãe usava para se referir a ela. Naquele dia sangrento, ela só queria ter um dia normal, ir à festa do seu colégio sem aquela culpa toda, havia costurado um vestido lindo para usar na festa e por um milagre tinha um par, milagre não… Por dívida, ela sabia que o Tomás só tinha chamado ela pro baile porque ele tinha pena e também culpa por ver tudo acontecer de novo e de novo e não fazer nada. Ela sabia disso, mas achou que podia usar isso a seu favor, como uma reparação para ter um dia normal, sabe? Mas algo mais sombrio a aguardava na festa, algo que a fez perder o controle dos poderes que a tanto tempo a mãe se empenhava tanto que ela reprimisse. 

Cabeção pareceu perceber os pensamentos perturbadores que se passavam pela cabeça de Carine e logo foi distraí-la com seu longo pelo fofinho se esfregando na sua cara. Ela o acariciou grata por ter ele na sua vida. Seu companheirinho. E, agora, além de Laura, ela tinha mais uma pessoa para contar, Lolis. 

*

Lolis estava sentada na beira da cama, observando Carine dormir profundamente ao seu lado. As primeiras luzes do raiar do dia começavam a invadir o quarto pelas frestas das cortinas e ela precisava ir embora. Mas, seus pensamentos estavam a mil, rodando em círculos incessantes sobre tudo o que sabiam — e, mais importante, sobre o que ela ainda não havia contado.

Há dois dias, Lolis havia descoberto a escola que seria alvo do ataque. E ela precisava contar a Carine, mas não teve coragem. Não conseguia ignorar o quanto aquilo consumia Carine por dentro. A dor e a culpa que Carine carregava eram grandes demais para serem reabertas sem consequências, esse era seu medo. Perder todo o progresso que fizeram. Ela e Jef haviam que dar um jeito nisso, sozinhos.

Carine dormia tão serenamente ao seu lado. Lolis sabia que, por trás daquela tranquilidade, havia uma tempestade que ela não queria reacender. O treinamento que ambas haviam feito preparou Carine para se defender, para enfrentar perigos externos, mas... e o interno? Aquilo que se escondia em cada memória, cada culpa e arrependimento? Lolis temia que, ao colocá-la de frente com tudo aquilo, mais uma vez, estivesse levando sua amada direto para o abismo.

Carine já havia enfrentado tanto. Viver com o peso de ter matado todos na escola, mesmo que por acidente, mesmo que em um momento de desespero, era algo que nunca a abandonaria - não por completo. E agora, envolvê-la ainda mais de novo nesse chorume poderia ser pesado demais. Talvez fosse egoísta da sua parte querer poupá-la. Mas era o que seu coração mandava. Ela amava Carine demais para permitir que ela se ferisse assim.

Lolis suspirou, passando as mãos pelo rosto. Exu Caveira havia avisado. Ela podia ouvir suas palavras ecoando em sua mente, lembrando do encontro no terreiro, em um momento de conexão espiritual profundo. “Sua luta será interna antes de ser externa.” Aquilo sempre a deixava inquieta, mas agora parecia fazer mais sentido do que nunca. O que significava essa luta interna de Carine? Não era suficiente ter sobrevivido? Carine não já havia lutado o bastante? Já não lutava com as memórias todos os dias? Quanto mais uma pessoa precisava enfrentar para superar um trauma? Viver com aquilo já não era demais? Cada dia, Carine enfrentava a sombra do que havia feito. Cada pesadelo, cada flashback, era como uma batalha nova. Como ela poderia colocá-la de volta naquele lugar de escuridão sem causar mais dor?

Mas havia algo maior em jogo agora. As vidas de outros adolescentes estavam em risco. O grupo de ódio, o ataque iminente… tudo aquilo dependia de suas ações, de suas decisões. Se ela escondesse a verdade de Carine, estaria protegendo-a ou condenando outros? E se Carine descobrisse que Lolis sabia de tudo e não a envolveu? O dilema corroía Lolis por dentro.

Ela olhou para Carine mais uma vez, agora se mexendo levemente no sono. Por que era tudo tão complicado? O amor vinha com tantos dilemas, tantos desafios. Por um lado, Lolis queria manter Carine longe daquele horror, queria proteger seu coração tão frágil. Mas, por outro lado, sabia que a própria Carine jamais escolheria fugir. Carine era uma sobrevivente e Lolis respeitava isso.

O que mais a perturbava era a sensação de que Exu Caveira estava certo. A verdadeira batalha que Carine enfrentava não era contra o ódio que se espalhava pelos adolescentes e suas redes, mas contra si mesma, contra o trauma não resolvido que ela carregava há anos. 

Talvez Lolis estivesse tentando poupar Carine, quando, na verdade, estivesse apenas adiando o inevitável. A luta interna era mais profunda que qualquer coisa que pudessem enfrentar lá fora. Era uma batalha que Carine precisaria travar, mais cedo ou mais tarde. E, o que aterrorizava Lolis, é que lutas internas, se travam dentro da mente, como ela poderia ajudar? Lolis apertou os olhos, tentando afastar a sensação de impotência. 

Ela se levantou lentamente, caminhando até a janela e puxando a cortina, deixando que a luz iluminasse mais o quarto. 

— Bom dia. — murmurou Carine, puxando-a para perto.

— Bom dia, Ginger girl. Eu preciso ir meu bem, tenho um safado para filmar, depois a gente se fala, tá bom? — se despediu beijando sua testa.

*

A sala de reuniões da delegacia estava abafada, o ar pesado com tensão e impaciência. Capitão Jef estava de pé, com os punhos cerrados sobre a mesa de conferência, olhando diretamente para o promotor de justiça sentado à sua frente. O promotor, Carlos, um homem de meia-idade, seus poucos fios cabelos estavam penteados todos para o lado direto da sua cabeça, seu rosto carregava uma expressão de ceticismo e tédio. Ele ajustou seus óculos e suspirou profundamente, como se toda aquela discussão fosse um incômodo desnecessário.

— Capitão Jef, eu já disse. Não podemos suspender as aulas de todas as escolas da região por causa de um boato — disse o promotor, a voz firme e autoritária. — A segurança nas escolas foi reforçada, protocolos de fuga foram implementados. Tudo está sob controle.

— Você acha que isso é só um boato? — Jef explodiu, sua voz cheia de frustração. Ele se inclinou mais para frente, tentando conter sua raiva, mas era quase impossível. — Nós estamos falando de vidas aqui! LIVES, entendeu doutor? Não podemos arriscar só porque você acha que está 'tudo sob controle'. Você não conhece essas pessoas como eu conheço. Eles vão agir, e quando agirem, vai ser tarde demais para reagir.

O promotor balançou a cabeça, impassível.

— Capitão, você está exagerando. As escolas têm vigilância reforçada, a polícia já está em alerta máximo, e se algo acontecer, estaremos prontos para agir. Não há necessidade de causar pânico em massa fechando escolas. Isso só prejudicaria a comunidade.

— Pânico em massa? — Jef deu uma risada incrédula, sem nenhum humor. — Você acha que fechar as escolas por precaução causaria mais danos do que deixar um grupo de ódio atacar adolescentes inocentes? Estamos lidando com fanáticos, gente que está disposta a qualquer coisa para cumprir seus objetivos. Aumentar a segurança não vai impedir esses malditos de tentar algo! Você realmente acredita que está tudo bem só porque tem alguns guardas a mais nas escolas?

O promotor ajustou a postura na cadeira, olhando para Jef como se ele fosse o único fora de si ali.

— Capitão, estamos seguindo os protocolos. Você mesmo sabe que as ameaças costumam ser exageradas. Grupos como esse falam mais do que agem.

— Falam mais do que agem? — Jef socou a mesa com tanta força que o som ecoou pela sala. Seus olhos estavam brilhando de raiva. — Estamos lidando com um grupo que já cometeu violência! Esse não é o primeiro alerta, e se não fizermos algo agora, haverá sangue nas mãos de todos nós — e o pior, nas suas, porque você se recusou a agir!

O promotor bufou, balançando a cabeça como se estivesse lidando com uma criança teimosa.

— Capitão, eu entendo que você está preocupado, mas temos responsabilidades maiores aqui. Fechar todas as escolas afetaria milhares de crianças e suas famílias. O impacto econômico e social seria enorme. Não podemos tomar uma decisão tão drástica baseada em suposições.

— Suposições? — Jef estava completamente atônito agora. — Isso não é suposição, é fato! Temos provas, temos fontes confiáveis, temos um padrão de comportamento que aponta para um ataque iminente. Você acha que está protegendo as pessoas deixando-as ir para escolas que podem ser alvos? Você quer que eu espere até que seja tarde demais, até que esses garotos morram, só para então poder dizer 'Eu avisei'?

O promotor ficou em silêncio por um momento, olhando para os papéis à sua frente, talvez na tentativa de evitar o olhar furioso de Jef. Ele suspirou novamente, como se estivesse lidando com um incômodo que não queria admitir.

— Capitão Jef, eu respeito sua dedicação e o trabalho da polícia, mas não podemos paralisar uma região inteira por medo de algo que pode ou não acontecer. O que eu sugiro é continuar monitorando de perto e, se houver qualquer sinal concreto de perigo, então tomaremos as medidas necessárias.

— Então você vai esperar até que os corpos estejam no chão? — Jef retrucou, cada palavra pesada como chumbo. — Porque é isso que vai acontecer se você continuar com essa arrogância. Eu já vi o que esse tipo de grupo pode fazer. Não estou exagerando. Eles têm um plano, e quando colocarem em prática, não vai ser bonito.

O promotor levantou a mão, cortando Jef com frieza.

— A decisão final já foi tomada, Capitão. As escolas continuarão funcionando. A segurança foi aumentada e os protocolos estão em vigor. Não haverá suspensão das aulas.

Por um segundo, o silêncio pairou na sala, e Jef entendeu que não havia mais nada que pudesse dizer para convencê-lo. A burocracia havia vencido, mais uma vez. Ele fechou os olhos, tentando controlar sua frustração e a sensação de derrota.

— Isso vai custar vidas na sua conta, depois não diga que eu não avisei. — Jef sussurrou, num tom baixo, sombrio.

O promotor se levantou, recolhendo os documentos à sua frente.

— Espero que não, Capitão. Mas, se isso acontecer, você que não fez seu trabalho direito, não eu. Esteja pronto para agir assim que tiver algo concreto. Passar bem.

Sem mais uma palavra, o promotor saiu da sala, deixando Jef sozinho com seus pensamentos. Ele se sentou lentamente, passando as mãos pelos cabelos.

Pronto para agir...

Eles nunca estariam prontos para agir até que fosse tarde demais.

*

Capitão Jefferson estava sentado na cadeira de couro da sala de terapia, as mãos descansando pesadamente sobre os joelhos. As cortinas finas deixavam a luz suave do final da tarde preencher o ambiente, e o som do tique-taque do relógio na parede parecia amplificar o silêncio que pairava na sala. Ele respirou fundo, os olhos fixos no tapete à sua frente, como se as palavras que estava prestes a dizer estivessem enterradas ali, esperando para serem desenterradas.

— Capitão, eu sei que você está frustrado com esse caso, a cidade inteira está em alerta e tem muita pressão nos seus ombros. Mas, você não acha que você talvez esteja projetando algo do seu passado nisso? Você sabe o que eu quero dizer…

— É sempre difícil falar sobre isso, doutora — começou ele, a voz baixa e pesada. — A história com Lolis... o passado dela, o passado nosso, às vezes sinto que nunca vamos conseguir nos libertar totalmente. Parece que, não importa o quanto eu tente cuidar dela, a sombra do que aconteceu ainda está lá. Sempre lá.

A terapeuta, uma mulher de olhos gentis e olhar atento, esperou pacientemente. Ela sabia que não podia apressá-lo. Jef era do tipo que precisava de tempo para organizar os pensamentos, para enfrentar os demônios que ainda o assombravam.

— Eu tinha... 16, 17 anos, quando minha mãe, Marta, se separou do pai da Lolis. Ele... ele era um desgraçado. Um alcoólatra violento que descontava toda a frustração dele na minha irmã. Lolis tinha o quê, uns 12 anos na época? — Jef suspirou, mexendo os ombros como se o peso das lembranças pressionasse sua nuca. — Ela era só uma menina, e aquele cara... ele simplesmente não conseguia lidar com o fato de que minha mãe tinha ido embora, que havia escolhido refazer a vida dela.

Ele parou por um momento, os olhos vidrados, revivendo as cenas que há tanto tempo tentava enterrar.

— Minha mãe se casou com meu pai, Joseph. Ele era tudo o que o pai de Lolis nunca foi. Um homem decente, carinhoso, que me ensinou a ser justo, que me mostrou o que é uma família de verdade. Mas o pai dela... aquele maldito... ele não conseguia deixar as coisas seguirem. — Jef engoliu em seco, as palavras começando a sair com mais dificuldade. — Ele aparecia lá em casa, bêbado, gritando, pedindo para a Marta voltar, dizendo que Lolis era a única coisa que ele ainda tinha. Mas era mentira. Ele só sabia machucar, tanto ela quanto a minha mãe. E, naquela noite, ele... ele foi longe demais. O meu pai estava viajando a trabalho e eu… Eu não consegui impedir que ele entrasse.

A sala de terapia pareceu ficar mais fria, como se o peso das memórias de Jef enchesse o ambiente.

— Eu nunca vou esquecer aquele som, o jeito que ele... que ele batia na porta da nossa casa. Tinha uma loucura nos olhos dele, sabe? Eu lembro da minha mãe mandando a gente se esconder, mas Lolis estava tão cansada de se esconder. E eu também. — Jef parou, suas mãos cerrando-se em punhos no colo. — A gente desceu as escadas, eu e ela. Ele estava furioso, fora de si. E eu... eu sabia que não ia deixar ele machucar minha irmã de novo.

A terapeuta assentiu, atenta a cada palavra.

— Ele começou a gritar, dizendo que ia levar a Lolis embora, que ninguém podia impedir. Eu tentei afastá-lo, tentei falar com ele, mas... Ele avançou em Lolis, com ódio, como se ela fosse a causa de todos os problemas dele. — A voz de Jef falhou por um segundo. — E eu... eu fiz o que eu tinha que fazer.

Ele fechou os olhos, as palavras presas em sua garganta por um instante, antes de continuar.

— Peguei a arma do meu pai, que ele mantinha trancada no escritório... Eu não tive escolha, doutora. Ele estava prestes a machucar a Lolis de novo, talvez até pior. — Jef respirou fundo, tentando controlar as emoções que surgiam. — Foi legítima defesa, mas... você acha que isso faz a dor desaparecer? Eu matei o pai dela, e não importa o quanto eu tente, não consigo apagar isso. Ele se foi, mas a sombra dele ainda está com a gente.

O silêncio que se seguiu era pesado. Jef não gostava de revisitar essas memórias, de sentir o peso da culpa, mesmo sabendo que o que fez salvou sua irmã. Mas isso não tornava as coisas mais fáceis. Não tornava o passado menos doloroso.

— Desde aquele dia, eu tento cuidar da Lolis, fazer o que posso para ser o irmão que ela merece. Mas tem dias que parece que... que o passado nos prende. Que não importa o quanto eu tente, eu nunca vou poder protegê-la o suficiente. A sombra daquele desgraçado está sempre lá, entre a gente.

A terapeuta olhou para Jef com ternura, inclinando-se levemente para frente.

— Jef, você fez o que precisava fazer. Salvou sua irmã. E eu entendo que essa sombra é difícil de carregar, mas... você já pensou que talvez Lolis não precise que você a proteja o tempo todo? Talvez o que ela mais precise seja exatamente o que você está oferecendo: o apoio, o amor da família, a certeza de que ela não está sozinha.

Jef balançou a cabeça, como se absorvesse as palavras da terapeuta. Ele sabia que era verdade. Ele sabia que Lolis era forte, que ela tinha sobrevivido a tudo aquilo e estava de pé. Mas a culpa, o medo de que o passado voltasse a assombrá-los, ainda o corroía por dentro.

— Talvez você tenha razão. — Ele suspirou, os ombros relaxando um pouco. — Mas não é fácil. Não é fácil ver a Lolis se meter em situações que a colocam em risco. Ela quer ajudar, quer estar na linha de frente, e eu entendo isso. Mas cada vez que ela se coloca em perigo, sinto como se aquele passado estivesse ali, esperando para nos puxar de volta.

A terapeuta sorriu suavemente.

— Você já pensou em falar sobre isso com ela? Talvez Lolis também carregue suas próprias sombras e precise compartilhar isso com você. Às vezes, ser forte juntos é o que realmente nos liberta do passado.

Jef ficou em silêncio por alguns segundos, considerando a ideia. Ele sabia que Lolis era forte, mas talvez, assim como ele, ela também carregasse aquele peso sozinha.

— Vou pensar nisso, doutora — respondeu finalmente. A terapeuta inclinou a cabeça, avaliando a postura de Jef. Havia mais ali. Algo que ainda estava pendente de ser discutido. Jef ficou em silêncio por alguns segundos, os pensamentos voltando ao passado. Sua escolha de entrar para a polícia estava diretamente ligada ao que aconteceu naquela noite, mas era mais do que isso.

— Eu me tornei policial porque... eu não queria que outras crianças tivessem que passar pelo que a Lolis passou. Pelo que eu passei. — Ele olhou para a terapeuta, os olhos carregados de sinceridade e peso. — Aquela noite mudou tudo para mim. Eu vi o que acontece quando as pessoas que deveriam nos proteger falham. Quando as crianças são deixadas para lidar com monstros sozinhas. Eu matei o pai da Lolis para protegê-la, mas isso nunca deveria ter acontecido. Ela nunca deveria ter sido machucada daquela forma. Eu queria... eu precisava fazer algo. Para que outras crianças tivessem alguém para protegê-las. Para que elas não tivessem que pegar uma arma para se defender de quem deveria amá-las.

A terapeuta sorriu, compreendendo a profundidade das palavras de Jef.

— Você transformou sua dor em propósito, Jef. Você se tornou a proteção que faltou naquela noite. E isso é uma força enorme. Jef assentiu lentamente, mas a sombra do passado ainda pairava sobre ele. Mesmo com tudo o que ele fazia, ainda se sentia responsável por Lolis, como se o peso daquela noite nunca fosse embora.

— Eu sei que fiz o que pude — disse ele, a voz mais firme agora. — Mas é difícil, sabe? É difícil lidar com a sensação de que o passado ainda nos persegue. Que, mesmo fazendo tudo certo agora, nunca vai ser suficiente para apagar o que aconteceu.

— Não se trata de apagar, capitão. Trata-se de viver com isso e seguir em frente. — A terapeuta olhou para ele com gentileza. — E você já deu passos gigantes. É preciso reconhecer isso.

A terapeuta observou Jef por mais alguns segundos, permitindo que o silêncio confortável se estabelecesse na sala. Ela sabia que momentos como aquele, quando o paciente realmente refletia sobre seu passado, eram cruciais. Mas havia outra coisa que ela precisava perguntar, algo que também fazia parte da jornada dele para a cura.

— Jef, você tem tomado seus remédios? — Ela perguntou gentilmente, mas com firmeza, seus olhos fixos nele.

Jef desviou o olhar por um segundo, quase envergonhado, antes de soltar um leve suspiro.

— Eu... tenho esquecido algumas vezes. Parece que, quando as coisas ficam corridas no trabalho ou quando tudo tá desmoronando, eu meio que deixo isso de lado.

A terapeuta sorriu com compreensão. Isso não era incomum.

— Jef, você precisa lembrar que os remédios não estão ali para te mudar. Eles estão para te ajudar a se curar. — Ela fez uma pausa, como se estivesse escolhendo as palavras com cuidado. — Pensa no remédio como um gesso. Quando a gente quebra um osso, a gente precisa de um gesso para manter tudo no lugar enquanto ele se recupera. Com o tempo, aquele osso se fortalece de novo, se reconstrói. Claro, ele nunca será exatamente o mesmo osso, mas ele vai se cicatrizar e ficar firme, forte o suficiente para, digamos, jogar bastante futebol de novo.

Jef soltou uma risada curta, a primeira desde que tinha entrado na sala.

— Eu nunca fui bom em futebol, doutora.

— Bem, então vamos dizer que é para segurar uma barra pesada como a que você enfrenta todos os dias — respondeu ela, com um sorriso divertido. — O ponto é que o remédio está ali para te ajudar a curar essas feridas. Assim como um osso, a mente também precisa de tempo e de suporte para cicatrizar. E não há vergonha em precisar desse apoio, entende?

Jef ficou em silêncio por um instante, absorvendo as palavras dela. Havia um certo alívio em reconhecer que ele não precisava carregar tudo sozinho, que era possível ter ajuda, e que isso não o tornava mais fraco, mesmo que estivesse fazendo aquelas sessões porque fora obrigado por Lolis.

— Certo, doutora — disse ele finalmente, com um pequeno aceno de cabeça. — Vou ser mais cuidadoso com isso. Acho que, se é pra me ajudar a voltar a "jogar futebol", eu devo fazer minha parte.

A terapeuta sorriu, satisfeita com a resposta.

— Isso mesmo, Jef. E você vai perceber que, com o tempo, o peso que você carrega vai ficando um pouco mais leve. A cicatrização leva tempo, mas você vai chegar lá.

Jef se levantou, ajeitando a jaqueta e dando um último olhar para a terapeuta.

— Obrigado, doutora. A gente se vê semana que vem.

— Com certeza. E, Jef, não esquece do "gesso". — Ela piscou, enquanto ele saía pela porta.