Erguemos os olhos para as mesmas estrelas, e vemos coisas tão diferentes.
(George R. R. Martin)
A casa de Dona Zefa, a mãe de santo de Lolis, estava iluminada por velas espalhadas pelos cantos do cômodo. O cheiro de ervas queimando no defumador se misturava com o aroma da arruda fresca, criando uma atmosfera de espiritualidade. Ela sentia a presença dos guias de Zefa na casa. Era diferente do seu poder de telepatia, ela sentia com o coração.
Lolis se sentou em frente à mesa onde Dona Zefa e os olhos profundos da mulher a analisavam profundamente. O semblante da mãe de santo era sério, como se soubesse exatamente o que Lolis vinha buscar antes mesmo de ela abrir a boca. Seus longos cabelos cacheados contornavam sua cabeça em que estava adornada por um lindo lenço amarelo com triângulos negros estampados.
— Saravá, minha filha, estava te aguardando. — disse Dona Zefa, ajustando seus colares de contas brancas e vermelhas. — Vejo que a tormenta tá rodando dentro de você.
— Saravá, mãe Zefa — respondeu Lolis, sentindo a inquietação crescer em seu peito. — Eu... preciso da sua ajuda.
A mãe de santo assentiu com calma e começou a arrumar os búzios na mesa, sem dizer mais nada. O silêncio só aumentava a ansiedade de Lolis, que entrelaçava as mãos no colo, tentando não demonstrar o quanto estava aflita. Sabia que Dona Zefa podia sentir suas emoções de longe, mesmo sem precisar de palavras.
— Joga os búzios — ordenou Zefa, estendendo a mão para que Lolis os tocasse e pedisse orientação.
Com um suspiro profundo, Lolis tocou os búzios, fechou os olhos e mentalizou sua pergunta: Como posso ajudar Carine sem destruí-la? Ela soltou os búzios na mesa em cima de um círculo de madeira com entalhes diversos, a forma como os búzios caiam, abertos ou fechados e em que lugar tabuleiro que daria a resposta que ela procurava, mas apenas os olhos experientes de Zefa poderiam interpretar.
A mãe de santo ficou em silêncio, analisando os búzios por um longo tempo, o olhar fixo nas conchas e no padrão que formaram. Lolis esperou, o coração batendo rápido no peito. Finalmente, Dona Zefa suspirou fundo, erguendo os olhos para a filha de santo, que esperava com expectativa.
— Você tá fazendo tudo errado, minha filha — disse ela, a voz firme como uma bronca silenciosa.
Lolis franziu a testa, confusa.
— Mas, mãe Zefa, eu só quero proteger a Carine. Ela já passou por tanta coisa, o que mais eu posso fazer senão tentar poupar ela desse sofrimento?
A mãe de santo balançou a cabeça, os olhos fixos nos de Lolis.
— Proteger, sim. Mas esconder a verdade não é proteção, Lolis. Você não pode ser o escudo dela — disse Dona Zefa com firmeza. — O amor é sincero, mesmo quando a verdade é dura e dolorosa. Esconder o que você sabe não vai salvar Carine. Vai quebrar a confiança entre vocês. E mais importante — Zefa apontou para os búzios —, você tá impedindo ela de lutar suas próprias batalhas. Lembra de Oxum, minha filha? Ela, com toda sua doçura, teve que enfrentar suas próprias dores quando perdeu seus filhos e chorou no rio. Mesmo sendo a mãe do amor e da fertilidade, ela precisou aceitar a verdade da perda para se transformar. Oxum não fugiu da dor. Ela encarou, se banhou nas águas e emergiu mais forte. E é isso que você precisa entender: Carine também tem que passar por suas águas. Você não pode impedir isso. Aliás, menina, você não deve tentar impedir isso.
Lolis engoliu em seco, sentindo o peso daquelas palavras. Ela sabia que estava sendo chamada à razão, mas a dor em seu peito ao pensar em expor Carine à verdade era quase insuportável.
— Mas, mãe, eu só não quero que ela se machuque mais. Ela já sofreu tanto... como posso fazer isso com ela de novo? Dona Zefa inclinou-se sobre a mesa, aproximando-se de Lolis com um olhar penetrante.
— Carine já está lutando uma guerra dentro dela. Você acha que tá poupando ela, mas tá tirando dela o direito de enfrentar o que precisa enfrentar. Exu Caveira já te avisou: a luta dela é interna antes de ser externa. E você não pode impedir essa luta, porque é dela. Não é sua. Por mais que você ame, por mais que queira cuidar, tem batalhas que são só dela pra vencer.
Lolis sentiu uma pontada no peito. Estava tão desesperada para manter Carine segura que não havia percebido o quanto a estava limitando. Queria protegê-la de mais dor, mas, talvez, sem querer, estivesse apenas adiando o inevitável.
— O que eu faço então, mãe? — Lolis perguntou, sua voz mais baixa agora, quase um sussurro. — Como posso ajudar sem traumatizá-la de novo? Dona Zefa olhou fundo nos olhos dela, com a sabedoria de quem já havia visto muitos amores e muitas lutas se desenrolarem na vida.
— Você fala a verdade. Não esconde mais nada. E fica ao lado dela, sem tentar carregar o peso sozinha. Carine precisa saber o que tá acontecendo, mesmo que doa. Ela tem o direito de se preparar, de decidir como vai enfrentar o que tá por vir. Se você continuar tentando protegê-la de tudo, só vai afastá-la e piorar as coisas. O amor é sinceridade, minha filha, mesmo quando o caminho é cheio de espinhos.
As palavras de Zefa eram duras, mas precisas. Lolis sabia que a mãe de santo estava certa. Estava tentando controlar o que não podia, e, no processo, estava impedindo Carine de crescer, de se curar. A batalha que se aproximava não era só contra o Capitão Y. Era também a batalha interna que Carine precisava travar com seu passado, e Lolis estava impedindo o caminho de Carine ao esconder a verdade.
Dona Zefa se levantou, indo até um pequeno altar no canto da sala. Ela pegou um pequeno saquinho de pano e voltou até Lolis, entregando-o.
— Isso é pra você. Um banho de defesa e clareza. Mas lembre-se, filha: não há proteção maior do que a verdade. Pare de tentar impedir o destino dela. Ajude ela a enfrentá-lo, mas não carrega isso sozinha. É assim que você vai ajudar Carine de verdade. Lolis pegou o saquinho e assentiu, sentindo as lágrimas surgirem em seus olhos. Dona Zefa a abraçou, um gesto que Lolis não esperava, mas que acolheu com gratidão.
— Obrigada, mãe — murmurou Lolis, a voz embargada. — Eu só quero que ela fique bem.
— E ela vai, filha — respondeu Zefa, afagando o cabelo de Lolis. — Mas vai ser do jeito dela, e na hora dela.
Enquanto saía da casa de Dona Zefa, Lolis sentiu o peso de sua decisão. Ela sabia o que precisava fazer agora. Não poderia mais esconder a verdade de Carine, não importava o quanto a verdade pudesse doer. Era hora de enfrentar tudo.