Afinal, de quantas maneiras um coração pode ser destroçado e continuar batendo?
(Stephenie Meye)
Carine ajustava a última barra de calça do dia no ateliê Costura & Cia, seus dedos ágeis, finos e compridos manuseiam com familiaridade o tecido enquanto a máquina de costura zumbia ritmadamente. Era a quinta barra que fazia em poucas horas, e embora o trabalho exigisse precisão, sua mente estava longe, perdida em um turbilhão de pensamentos que a rondavam desde que Lolis havia falado com Matias.
Eles haviam conseguido uma pista valiosa — o suficiente para invadir uma casa em um condomínio onde supostamente parte do grupo de ódio operava. Um avanço importante. Mas o que a incomodava, e o que ela não conseguia afastar, era a falta de pistas sobre o próximo ataque.
Ela sabia que o grupo planejava algo grande, e tudo indicava que a próxima investida seria em uma escola. O problema era que, com todas as investigações em andamento, ainda não haviam conseguido identificar o local exato. Se Matias, com sua rede de contatos obscura, já sabia sobre o condomínio, por que ele não tinha nenhuma pista da escola?
“Não faz sentido”, pensou Carine, enquanto ajustava o tecido mais uma vez, cortando os excessos com precisão. Se Matias sabia o suficiente para direcioná-los ao condomínio, então seria lógico supor que ele também saberia algo sobre a escola. Afinal, tudo parecia conectado. Qualquer rastro deveria levar a essa resposta crucial, qualquer pista poderia ajudar.
Mas o que mais a perturbava era a confiança que ela depositava em Lolis. Se houvesse algo sobre a escola, Lolis contaria, não contaria? Essa pergunta martelava em sua cabeça enquanto ela finalizava a barra da calça e esticava o tecido para verificar o trabalho. Ela confiava plenamente em Lolis, mas algo estava estranho. Lolis parecia mais reservada, mais distante nas últimas conversas.
Carine suspirou, largando a calça finalizada no cesto de pedidos prontos. Seu olhar se perdeu por alguns segundos na máquina de costura, mas sua mente estava longe, tentando ligar os pontos. Lolis contaria... não contaria?
Ela fechou os olhos por um momento, buscando alguma clareza. Talvez estivesse apenas sendo paranoica, vendo coisas onde não havia. Lolis sempre foi sincera com ela… Ao menos ela achava que sim. A campainha da porta soou quando mais um cliente entrou no ateliê, trazendo Carine de volta à realidade. Ela forçou um sorriso, atendendo a pessoa que precisava de mais um ajuste simples. No entanto, o peso em seu peito não desaparecia. Ela precisaria conversar com Lolis. Mesmo que fosse doloroso, não podia continuar com essa incerteza.
Depois de resolver o pedido do cliente, Carine voltou para o canto do ateliê onde guardava suas ferramentas. Pegou uma tesoura e começou a arrumar o espaço, os pensamentos ainda ecoando na sua mente.
Lolis contaria. Mas, se ela não contou, é porque pode ter algo mais acontecendo. Carine sabia que precisava ser paciente, mas também sabia que o tempo estava se esgotando. O próximo ataque estava próximo, ela sentia e quanto mais cedo encontrassem a escola, mais chances teriam de salvar vidas.
*
Lolis saiu da casa de Dona Zefa sabendo o que tinha que fazer. As palavras da mãe de santo ressoavam como um eco persistente: "Pare de tentar impedir Carine de lutar suas próprias batalhas." Ela iria conversar com Carine em breve. Só precisava escolher as palavras certas para contar que esconder a verdade por algum tempo…
Antes de subir em sua lambreta, o celular de Lolis vibrou no bolso. Ela pegou o aparelho e viu que era uma mensagem urgente de Jef: "Precisamos nos reunir agora. Recebemos um alerta. O grupo de ódio está trocando informações codificadas — pode ser um horário, uma data ou até um endereço. Pode ser o ataque. Venha pra delegacia."
O coração de Lolis acelerou. Porra! Ela achou que eles haviam algum tempo ainda antes, antes… As mãos dela estavam trêmulas enquanto digitava uma resposta rápida para Jef, confirmando que estava a caminho. O tempo estava se esgotando, e a tensão crescia com cada segundo.
Assim que terminou de responder a Jef, uma nova notificação apareceu em seu celular. Era uma mensagem de Carine: "Lolis, precisamos conversar. Tem algo me incomodando... Pode ser hoje?". "Merda!!" - pensou Lolis, nada acontece, depois tudo acontece ao mesmo tempo!
Lolis sentiu um aperto no peito. Carine deve ter sacado que ela tava escondendo algo, ela é muito inteligente. O que deveria ser um alívio só aumentou o peso em seus ombros. Ela sabia que deveria ter sido honesta desde o início, mas agora não havia tempo para uma conversa longa e emocional. O Capitão Y estava se movimentando, e Jef estava certo — qualquer detalhe poderia ser crucial para impedir o ataque.
Ela digitou rapidamente: "Ginger girl, eu entendo... Eu também preciso falar com você. Mas estou numa correria agora. Preciso ir à delegacia. Me desculpa, é urgente."
Lolis hesitou antes de apertar "enviar". Queria tanto resolver isso com Carine ali e agora, mas sabia que não podia deixar Jef esperando. A situação com o grupo de ódio era imprevisível, e se estivesse mesmo relacionado ao ataque na escola, eles tinham que agir rápido. Sua prioridade, naquele momento, tinha que ser impedir uma tragédia.
Ela enviou a mensagem, respirando fundo enquanto apressava o passo em direção ao ponto de táxi mais próximo. O caminho até a delegacia parecia mais longo do que o normal, e sua mente oscilava entre o dever de proteger tantas vidas inocentes e o desejo de cuidar do que estava acontecendo entre ela e Carine. Será que ela entenderia? O medo de perder sua confiança a torturava. Não podia deixar Carine no escuro por mais tempo, precisava ir à delegacia o mais rápido possível. Carine teria que esperar, só mais um pouquinho…
*
A sala de conferências da delegacia estava um caos. Autoridades locais, policiais, investigadores e até um professor da faculdade de Segurança da Informação haviam sido convocados às pressas para tentar decifrar o código interceptado. Todos falavam ao mesmo tempo, criando um ambiente de desorganização e desespero. Era como se o tempo estivesse contra eles, e a tensão era palpável no ar.
Lolis entrou na sala com passos rápidos, sentindo o ambiente carregado de urgência. Ela suava frio, não apenas por causa da pressão do momento, mas porque sua mente estava em outro lugar. Enquanto observava a confusão na sala — pessoas agitando papéis, a mensagem projetada no telão, vozes se sobrepondo em discussões que não levavam a lugar algum — ela não conseguia parar de pensar em Carine.
Eu devia ter contado tudo. A culpa a sufocava. Ela poderia estar aqui ajudando, mas eu a deixei no escuro.
— Silêncio, Porra! — A voz de Capitão Jef ecoou pelo cômodo, firme, tentando controlar o caos. Ele estava de pé ao lado do quadro branco, onde algumas tentativas de decifrar o código já estavam rabiscadas. Mas nada fazia sentido ainda. — Senhores, temos pouco tempo! Sabemos que o grupo está planejando algo, mas não conseguimos entender a mensagem. Se continuarmos assim, vai dar merda!
O professor da faculdade, Dr. Souza, um homem baixo de óculos grossos, ajustou o projetor e mostrou na tela os símbolos e números que haviam sido interceptados. Era uma combinação de letras e números que pareciam não seguir uma lógica óbvia. Mesmo para os especialistas, a decodificação estava se provando mais difícil do que o esperado.
— Parece um método de cifra por substituição — disse o professor, sua voz calma, mas tensa. — Pode estar ocultando uma data, um horário ou até um endereço, como vocês suspeitam. Mas sem a chave certa, podemos estar olhando para isso por horas sem sucesso.
Lolis se sentou em uma cadeira no fundo da sala, observando a cena com atenção. Ela sabia que aquele código poderia ser a única pista que havia antes que o ataque ocorresse. Cada minuto perdido significava um risco maior. As mãos dela estavam suadas, e ela podia sentir o suor escorrendo pela nuca. O calor do ambiente e a pressão psicológica estavam mexendo com seus nervos.
E, como uma lâmina invisível, a culpa continuava a perfurá-la. Carine deveria estar aqui. Ela tinha um instinto incrível para detalhes, e Lolis sabia que, se Carine soubesse o que estava acontecendo, provavelmente já estaria contribuindo para resolver o enigma. Mas não… Lolis havia escolhido proteger Carine, justamente da verdade…
Jef se aproximou da tela, apontando para o código.
— Precisamos descobrir o que significa isso. Não podemos falhar. Esse grupo já provou que é perigoso e está disposto a tudo para causar estragos. Qualquer pequeno detalhe aqui pode ser vital.
As vozes continuavam a se elevar, cada um oferecendo uma teoria diferente sobre o código. Era um vai e vem de ideias que só aumentava a confusão. Os policiais tentavam manter a ordem, mas o clima na sala era de completo caos.
— E se for uma combinação de datas? — um dos agentes sugeriu.
— Ou pode ser uma coordenada! — disse outro.
Lolis tentava concentrar-se, mas a confusão ao redor e seus próprios pensamentos a distraíam. Tinha um motivo porque ela gostava de trabalhar sozinha. Olha aquela bagunça! Como ia ouvir os próprios pensamentos? Mesmo assim, a mesma pergunta martelava na sua mente, incapaz de ser ignorada. Por que eu não contei a ela? Carine havia lutado tanto para se reerguer depois de tudo o que havia passado, e Lolis achou que estava protegendo-a ao não compartilhar tudo. Mas agora, ela via o erro em sua escolha. Carine era forte, e talvez já tivesse a peça que faltava para completar o quebra-cabeça.
Enquanto o caos na sala aumentava, Lolis se levantou de repente, seu coração disparado. Ela precisava fazer algo. Precisava recuperar o tempo perdido e contar tudo a Carine. Mas, antes que pudesse dar mais um passo, foi interrompida por uma batida na mesa.
— Ei, olhem isso! — disse o professor, com os olhos arregalados, apontando para a projeção. — Essa sequência de números... pode ser parte de uma coordenada de GPS. Ou uma data específica. Talvez tenhamos uma pista, mas precisamos focar na combinação certa.
A sala inteira ficou em silêncio por um momento, todos encarando a sequência no projetor. Ainda havia tempo, mas não muito.
Lolis respirou fundo, seus dedos tremendo levemente. Ela sabia que Jef e o resto da equipe estavam empenhados, mas o medo de que tudo dependesse de uma única interpretação correta a deixava tensa. E, mais uma vez, seus pensamentos voltaram para Carine. Será que ela poderia ter feito a diferença?
Lolis sabia que precisava decidir rapidamente. Continuava ali com as autoridades, tentando decifrar o código, ou corria até Carine para contar toda a verdade.
*
Carine saiu do ateliê Costura & Cia para o seu intervalo, sentindo o leve alívio de ter alguns minutos para si mesma. O dia estava intenso, sua mente sobrecarregada com tantas dúvidas, mas naquele momento, tudo o que ela queria era algo doce para espairecer. Ela já tinha planejado sua breve pausa para comer um cookie de chocolate, uma das pequenas alegrias de seus dias de trabalho.
Sem prestar muita atenção ao caminho, Carine se distraiu e acabou errando a direção. Ao invés de ir direto para a pequena padaria onde sempre comprava seu cookie, ela se viu passando pela praça de alimentação. O ambiente barulhento e lotado de adolescentes chamou sua atenção. Era estranho ver tantos jovens ali em plena tarde de um dia de semana, uma hora em que deveriam estar na escola.
Ela olhou ao redor, observando alguns alunos sentados em grupos, rindo e mexendo em seus celulares. Esses adolescentes claramente estavam matando aula pois a maioria dos colégios da cidade tinha aulas à tarde ou eram integrais, pensou. Mas seu coração parou quando ouviu um garoto exclamando com a voz estridente:
— Mano, um maluco invadiu nosso colégio! Ele tá armado! Olha, o pessoal tá fazendo live de tudo!
Carine parou instantaneamente, seu corpo congelando por um momento. Invadiu uma escola? Armado? Seu coração disparou. Ela se virou na direção dos adolescentes e viu um deles, com os olhos arregalados, mostrando o celular para os outros. O choque e o pânico estavam estampados nos rostos deles, e Carine soube que aquilo não era apenas brincadeira de adolescentes. Algo muito sério estava acontecendo.
Ela se aproximou, com o coração acelerado e o sangue fervendo nas veias.
— De que escola vocês estão falando? — Carine perguntou, a voz firme, mas cheia de urgência.
Um dos garotos, um pouco mais desafiador, se virou para ela, com um sorriso insolente.
— Ih, tia, cai fora! — disse ele, rindo, claramente sem perceber a gravidade da situação.
Mas outro garoto, sentado mais ao fundo, olhou para Carine com os olhos arregalados, a expressão dele mudando completamente. Ele a reconheceu imediatamente. Era o mesmo garoto cuja memória Lolis havia apagado no incidente no cinema — ou, ao menos, Lolis pensou que tivesse apagado. Carine sentiu um calafrio ao perceber o reconhecimento no olhar dele.
— Você... você é a super-heroína! — o garoto exclamou, apontando para ela com excitação. — Tá vendo, cara? Eu disse que ela era real! É ela!
Carine sentiu o estômago afundar. Isso não podia estar acontecendo. Ser reconhecida naquele momento era algo que ela não queria e nem podia lidar. Ela olhou ao redor, sentindo o pânico começar a tomar conta, mas sabia que precisava manter a calma. Se fosse exposta ali, em público, poderia atrair ainda mais atenção indesejada, especialmente com uma situação tão tensa acontecendo.
— Tá maluco garoto? Sou costureira. — Carine retrucou. Ela tentou manter a voz firme, mas o garoto continuava olhando para ela, convencido do que estava vendo. Seus amigos, confusos, se entreolhavam, sem saber no que acreditar.
Foi então que Carine percebeu o nome do colégio no uniforme de um dos meninos: Goal Borubo Educacional. Sem perder mais tempo e tentando não chamar mais atenção, Carine deu meia-volta e começou a correr. O coração batia acelerado enquanto ela apertava o passo. Agora, tudo fazia sentido. O ataque estava acontecendo, e ela não podia ficar parada.
Ela digitou com pressa para Lolis enquanto corria: Goal Borubo Educacional. Esperava que só isso a fizesse entender, ela não tinha mais tempo. A escola era próxima ao Costura & Cia, mas seriam uns 5 minutos apé até lá, talvez menos se ela conseguisse manter a velocidade.
*
O ar quente do planalto paulista queimava o rosto de Carine enquanto ela corria pelas ruas em direção à escola. Como tinha gente que não acreditava em aquecimento global? Ela estava sendo praticamente frita. Cada passo que dava era uma mistura de adrenalina e terror. Goal Borubo Educacional. Era lá que o ataque estava acontecendo, e ela não podia perder mais um segundo. Já era tarde demais.
Quando chegou à frente da instituição, o que viu fez seu estômago revirar. Dois seguranças estavam amarrados e rendidos na porta de entrada, com os olhos arregalados e amordaçados. Um dos homens se mexeu, tentando se soltar ao ver Carine, mas estava claramente em pânico. A situação era pior do que ela imaginava.
No centro da entrada, um garoto encapuzado segurava uma espingarda calibre 12. Ele parecia estar guardando o portão como se fosse um soldado em missão, a postura rígida, os olhos vidrados, em choque. Carine ouviu os gritos vindos de dentro da escola, desesperados, abafados pela distância, e seu coração apertou. Ela precisava agir rápido. O garoto virou a cabeça em sua direção, levantando a arma sem hesitação.
— Parada aí! — ele gritou, a voz tremendo de emoção, mas carregada de determinação. — Se afasta ruivinha ou eu atiro!
Carine não podia se dar ao luxo de hesitar. Ela olhou diretamente nos olhos do garoto, sentindo o medo dele misturado com a raiva. Ele não passava de um adolescente... Perdido em um mundo de ódio e desespero. Ela sabia que precisava parar isso.
Sem dizer uma palavra, Carine ergueu a mão, fazendo um pequeno movimento e em um instante, o garoto foi lançado para trás com uma força invisível, a espingarda voando de suas mãos e caindo no chão com um estrondo. Ele colidiu contra a parede da entrada e desabou no chão, atordoado, mas vivo.
O portão estava destrancado. Ela tinha que entrar. Agora. Ela queria que Lolis estivesse ao seu lado. Sentia a falta dela mais do que nunca, mas não havia tempo para esperar por reforços. O sons de gritos e tiros vindos de dentro da escola aumentava a cada segundo. Ela precisava parar isso.
Ela abriu o portão com um puxão brusco e correu para dentro da escola. O cenário que encontrou era de pesadelo. O cheiro metálico de sangue estava no ar, e os corpos de alguns estudantes já estavam caídos no chão.
Assim que viu o sangue, um nó se formou em sua garganta, suas pernas começaram a tremer. O suor frio escorria por sua testa, misturando-se à adrenalina. Flashbacks a atingiram com força. Ela voltou para aquele dia, dez anos atrás, quando ela mesma havia causado uma cena parecida. Sangue. Tanto sangue. Correndo pelas paredes, se espalhando pelo chão. O olhar vazio nos rostos dos colegas, os gritos abafados ecoando em sua mente. O pânico tomou conta de Carine. Por um segundo, ela sentiu que estava de volta àquele dia, de volta àquele momento em que tudo saiu do controle.
A imagem de seus antigos colegas mortos no chão tomou conta de sua visão, e o ar ficou rarefeito. Ela tentou respirar fundo, mas o gosto metálico do sangue parecia estar em sua boca. Queria correr, fugir daquele inferno, mas sabia que não podia. Não dessa vez. Seus instintos lhe diziam para sair correndo, mas ela lutava contra eles com todas as forças.
Seus olhos lacrimejaram. Ela piscou com força e obrigou-se a seguir em frente. O sangue escorria pelas paredes, pintando o ambiente com uma tonalidade macabra, e o horror de tudo aquilo a atingiu como um soco no estômago.
Carine parou por um momento, o pavor e a raiva lutando por controle dentro dela. Seu estômago revirava, e ela teve que engolir com força para não vomitar. Cada corredor que cruzava trazia mais uma onda de memórias sangrentas. Ela sabia que não poderia fraquejar agora, mas seu corpo traía sua mente, seus dedos tremiam enquanto ela corria pelos corredores procurando sobreviventes.
Até que ouviu aquela voz…
— Só pela dor as pessoas vão entender... Só pela dor elas vão parar de ser como são!
Capitão Y. A voz era inconfundível, o mesmo discurso distorcido e fanático. Ele estava ali, dentro da escola, continuando sua cruzada de terror. Carine sentiu o pânico ameaçar dominá-la enquanto flashbacks do passado explodiam em sua mente. O massacre que ela havia causado há anos, o sangue, os gritos, os rostos aterrorizados... tudo voltou com força total.
Por um segundo, Carine hesitou. E se ela perdesse o controle de novo? E se, ao tentar parar Capitão Y, ela se tornasse o monstro que tanto temia ser? O chão ensanguentado sob seus pés a ancorava no horror do momento, mas as lembranças ameaçavam tirá-la dali, arrastando-a de volta para a dor do passado.
Mas então, ela pensou em Lolis. Pensou nas vidas que ainda poderiam ser salvas. Carine juntou toda a coragem que ainda restava dentro dela e correu em direção à voz de Capitão Y. Ela precisava ignorar o sangue, ignorar os corpos espalhados pelos corredores, e focar no único objetivo: parar aquele massacre antes que mais inocentes morressem.
— Para onde você vai, Carine? — A voz de Capitão Y ressoou pelos alto-falantes da escola, cheia de cinismo. — Você acha que pode me parar? Acha que pode mudar o mundo, deter o inevitável? Estou aqui por sua causa, foi muito fácil te achar, costureira né? Que sem graça. Você nasceu para ser muito mais. Aceite seu destino. Faça-os pagarem.
A voz daquele desgraçado ecoava pelos microfones da escola. Ele havia escolhido o colégio mais perto dela. Ele sabia que ela iria até lá. O terror tomou conta de seu corpo, ela estava paralisada. Era tudo sua culpa. Se ela tivesse dominado seus poderes antes… Ele… Ele não teria fugido e planejado outro ataque!
Ela virou uma esquina e viu um grupo de adolescentes encurralados no fundo do corredor, aterrorizados. Capitão Y estava de pé, a encarando, segurando um microfone em uma mão e na outra arma apontada para adolescentes encurralados. Ele falava com uma calma assustadora, como se aquilo fosse a coisa mais natural do mundo.
— Está na sua hora de brilhar, Carine! Aceite seu destino, olha separei esses daqui para você! Não precisa se conter. Liberte-se dessas amarras, vamos fazer eles pagarem!
O sangue de Carine gelou por um instante. Capitão Y sabia exatamente como manipulá-la, tentando reacender o trauma e a culpa que ela carregava. Mas desta vez, ele não conseguiria. Ela não era mais a garota assustada que cometera um erro terrível por conta de pessoas horríveis que achavam que brincar com as fraquezas dos outros era divertido. Ela era mais forte agora. Ele a olhava com expectativa, como se esperasse algo. Como se esperasse que ela abraçasse aquela escuridão que ele lhe oferecia. Carine respirou fundo, sentindo seu poder correr por suas veias. Capitão Y não veria o que estava por vir.
Ela levantou uma das mãos com um movimento rápido e preciso, e, num instante, a arma foi arrancada das mãos dele por uma força invisível. O microfone voou da outra mão, colidindo com a parede, e o som de seu discurso perturbador cessou de uma vez. Capitão Y ficou desnorteado, tropeçando para trás com a súbita perda de controle.
— Você é um merda, Capitão Y! — Carine gritou, sua voz carregada de fúria e determinação. — Aliás que porra de nome de merda, hein? Você acha que a dor vai resolver alguma coisa? Acha que forçar os outros a sofrerem vai consertar o que está errado no mundo?
Ela deu um passo à frente, ignorando o olhar atônito de Capitão Y.
— Eu sei como adolescentes podem ser malvados, cruéis. Eu vivi isso. Mas eles são jovens criados por um mundo de merda e ainda podem mudar, aprender com seus erros. Eles têm que pagar, sim, têm que ser responsabilizados, mas não assim! Não com sangue, não com morte!
Enquanto falava, ela sentia a intensidade de suas palavras reverberando por seu corpo. Carine estava firme, inabalável. Cada palavra era um manifesto contra o ódio, contra o ciclo de violência que Capitão Y tentava perpetuar. Ele queria que o mundo se dobrasse à dor, mas Carine sabia que existia uma outra saída. Ela era a prova viva disso. Ela o segurou no ar com os braços e pernas em formato de X. Assim que o Capitão Y deveria ficar, bem preso - pensou.
— Você... você não entende nada! — ele gritou — A dor é a única coisa que eles vão ouvir! É o único jeito de mudar o mundo!
— Não — Carine respondeu, aproximando-se mais um passo, sem quebrar o contato visual. — Você é que não entende. Se a vingança resolvesse algo eu estaria bem, eu estaria feliz, eu teria uma vida normal, sem traumas. Não é assim. Eu tirei vidas que poderiam ter evoluído e pago por isso todos os dias.
Por um breve momento, Capitão Y pareceu ouvir o que ela tinha a dizer. Ouvir de verdade. Ela por um momento chegou até a acreditar que vencendo essa batalha, não apenas fisicamente, mas também no campo das ideias. Mas, de repente, uma dor lancinante percorreu suas costas. Um choque brutal invadiu seu corpo, e Carine soltou um grito de dor. Ela se contorceu, caindo de joelhos no chão, sentindo o poder de seus músculos sendo subjugado por uma força que ela não podia controlar. Sua visão ficou turva por alguns instantes enquanto o choque continuava a atravessá-la como uma corrente elétrica insuportável.
Ela tentou virar a cabeça e viu, por um instante, um dos capangas de Capitão Y atrás dela, segurando um teaser com uma expressão fria no rosto.
Capitão Y riu.
— Achou mesmo que seria tão fácil me pegar, Carine? — ele zombou, aproximando-se lentamente. — Acha que palavras bonitas vão salvar esses adolescentes? Eles merecem a dor que vão sentir. O mundo merece! A família desses merdinhas vai sentir falta deles. Eles vão se sentir tão quebrados quanto nós.
Carine ofegava, tentando se levantar, mas seus músculos tremiam incontrolavelmente devido ao choque. O capanga ainda segurava o teaser, pronto para ativá-lo novamente, e Capitão Y avançava, pegando a arma que ela havia arrancado dele com seus poderes.
— Você pode ser forte, mas é só uma garota que carrega um fardo. Se entendesse que o que você fez foi o certo, se libertaria de toda essa dor, como eu fiz.
Mesmo no chão, mesmo com a dor queimando por todo o seu corpo, Carine não se permitiu desistir. Ela não era mais aquela garota. Ela lutava não apenas com seu corpo, mas com sua própria alma. O passado queria sufocá-la, mas ela sabia que não podia deixar que ele vencesse. Ela tinha que lutar — por aqueles adolescentes, por seu futuro, e por si mesma. Salvá-los era uma chance de se redimir, de mostrar para si mesma que ela não era um monstro.
Com toda a sua força mental, ela ergueu a mão de novo, canalizando o poder que ainda pulsava dentro dela, apesar da dor. Ela sentiu o fluxo da energia atravessar seu corpo, e, com um movimento brusco, o capanga foi lançado contra a parede, caindo inconsciente.
Capitão Y parou, surpreso com a resistência de Carine, mas ela não o deixaria reagir.
— Você não é um justiceiro como pensa que é Capitão, é só mais um merda que existe no mundo. Mais uma coisa ruim, mas você não vai machucar mais ninguém! — ela vociferou, juntando todas as suas forças para atacá-lo novamente, mas o choque percorreu seu corpo novamente, fazendo a tremer e gritar de dor.