Capítulo 16

Quando você olha muito tempo para um abismo, o abismo olha para você. 

(Friedrich Nietzsche)

O som dos pesos batendo no chão de borracha ecoava no "Arena dos Campeões", o estúdio de CrossFit de Matias. O lugar estava lotado, com pessoas suando e gritando em cada repetição. Matias estava no centro do estúdio, como sempre, liderando a turma com sua postura rígida e voz imponente, seus músculos reluzindo de suor. Para qualquer um que olhasse de fora, ele parecia o retrato da superação e disciplina. No entanto, por trás daquela máscara de sucesso, suas inseguranças sempre o perseguiram, por isso ele precisava treinar mais, ficar mais forte, não podia ser fraco… Não de novo.

Lá fora, porém, o estúdio começava a ser cercado. Viaturas da polícia haviam estacionado ao redor, e a tensão no ar era palpável. Jef estava à frente, com o rosto endurecido, pronto para fazer o que precisava ser feito.

Matias nem imaginava o que estava prestes a acontecer. Ele incentivava seus alunos a darem tudo de si, gritando palavras de motivação enquanto demonstrava uma nova série de exercícios. 

— Agora vocês vão subir na corda até o final e descer como campeões, depois fazer dez burpees

Foi então que as portas do estúdio se abriram com um estrondo, interrompendo o treino abruptamente. Todos os presentes se viraram, surpresos, para ver uma equipe de policiais entrando com firmeza.

— Matias Ferreira! — Jef chamou com a voz firme, cortando o ar. — Você está preso e tem o direito de permanecer calado, tudo que disser poderá e será usado contra você no tribunal!

Matias congelou, seus olhos arregalados, enquanto os alunos ao seu redor trocavam olhares confusos. O estúdio ficou em silêncio, exceto pelo som dos pesos ainda balançando no chão. Um sorriso forçado surgiu no rosto de Matias, tentando manter a pose de superioridade.

— Isso é algum tipo de brincadeira, policial? — ele perguntou, erguendo as mãos em um gesto teatral. — Eu sou dono deste lugar, sou um empresário bem-sucedido. Vocês não têm nada contra mim.

Jef avançou em sua direção, com os olhos fixos no homem que antes parecia intocável.

— A gente tem mais do que o suficiente. Temos as conversas, os fóruns que você acessava, as mensagens que você trocava com aquele grupo de desgraçados do Esquadrão Y. Você não é tão esperto quanto pensa, Matias. — Jef fez uma pausa, observando a expressão de Matias mudar, o pânico começando a surgir em seus olhos. Os alunos faziam comentários de indignação, desacreditando no que ouviam. — É impossível não deixar rastros na internet. Sempre há alguma coisa que fica, e você deixou muito mais do que isso.

Matias abriu a boca para responder, mas antes que pudesse dizer qualquer coisa, Jef continuou.

— Eu já vi muita coisa nessa vida, Matias. Já vi vítimas se tornarem algo muito pior que seus agressores. E é exatamente isso que você se tornou. Quando você foi humilhado, sofreu, eu imagino que tenha jurado nunca ser como eles. Mas olha só para você agora. Um homem que prega ódio, que planeja ataques contra inocentes, contra adolescentes que nem te conhecem. Você acha que isso faz de você mais forte? Acha que está se vingando de quem te fez mal? — Jef deu um passo à frente, seus olhos penetrando os de Matias. — Você não é melhor que eles. Na verdade, você é pior.

Matias apertou os punhos, tentando manter o controle.

— Eu só estava tentando ensinar uma lição, fazer as pessoas entenderem…

— Uma lição? — Jef riu, mas sem humor. — Você acha que espalhar terror vai ensinar alguma coisa? Você acha que fazer as pessoas sentirem dor vai consertar o que aconteceu com você? Isso não é justiça, Matias. Isso é crueldade. E você se afundou nisso tão fundo que nem consegue ver mais a diferença entre o certo e o errado.

Matias baixou o olhar por um momento, mas logo voltou a encarar Jef com raiva.

— Você não entende. Você nunca passou pelo que eu passei!

Jef suspirou, balançando a cabeça.

— Talvez eu não tenha. Mas eu vi gente como você, que não soube parar, que deixou o ódio consumir até que não sobrou mais nada de quem era. Acha que os seus agressores estão perdendo o sono por causa disso? Não estão. Só você está. E agora, por causa dessa obsessão, vai pagar o preço.

Matias ficou em silêncio, as palavras de Jef parecendo penetrar lentamente. Os outros policiais se aproximaram para algemá-lo, e ele não ofereceu resistência, ainda processando tudo o que fora dito.

Jef, por sua vez, observava a cena com um misto de satisfação e resignação. Ele sabia o que viria a seguir. Matias tinha uma família influente e rica. Ele não ficaria muito tempo preso. Talvez alguns meses, com sorte. Dinheiro comprava liberdade. Ainda assim, a sensação de prendê-lo, de responsabilizá-lo pelo que havia feito, trazia uma pequena vitória.

— Eu sei que você não vai ficar muito tempo preso, Matias — Jef disse enquanto os policiais o escoltavam para fora. — Tu é branco, sua família tem dinheiro. Mas, estou satisfeito. Pelo menos, por um tempo, você vai sentir o gosto das consequências. E talvez, só talvez, isso te faça pensar.

Matias não respondeu. Seu olhar era vazio enquanto era levado para a viatura. Talvez ele estivesse processando o que Jef disse, ou talvez estivesse pensando em formas de se livrar daquilo o mais rápido possível. Jef não sabia, e, no fundo, não importava. O que importava era que, por hoje, Matias estava fora das ruas. E, por hoje, Jef sentia que tinha feito o seu trabalho.

*

O Gato Preto exalava um cheiro denso de incenso de mirra que flutuava no ar, misturado ao leve odor de velas derretendo em castiçais negros. As luzes vermelhas refletiam nas paredes escuras, projetando sombras suaves sobre as mesas de madeira que pareciam ter sido arrancadas de uma catedral gótica esquecida. O ambiente tinha um charme sombrio, perfeito para quem queria se esconder do mundo, e naquele momento, Jef, Lolis e Carine precisavam exatamente disso. O trio estava sentado em uma mesa ao fundo, o ambiente abafado contrastando com o alívio de uma missão finalmente concluída.

Jef tomou um longo gole de sua cerveja preta, os olhos cansados, mas satisfeitos. Ele colocou a garrafa na mesa e olhou para as duas.

— O Capitão Y foi encaminhado para um presídio de segurança máxima. — disse ele, com a voz grave, quebrando o silêncio. — O cara não vai ver a luz do dia tão cedo. É um bom começo.

Lolis, que estava recostada na cadeira, observando o movimento suave da fumaça de incenso que pairava no ar, fez um aceno lento com a cabeça.

— Ainda tem muito lixo para ser removido. Mas é bom saber que tiramos mais um da jogada — ela respondeu, tomando um gole da cerveja que tinha um leve gosto de café.

Jef inclinou-se um pouco para a frente, apoiando os cotovelos na mesa. O olhar dele era grave, mas com uma pitada de alívio.

— Alguns dos recrutas dele abriram o bico. Conseguimos rastrear mais deles, mesmo com toda aquela criptografia. Acharam que estavam protegidos, mas você sabe... ninguém consegue se esconder por muito tempo na internet.

Carine, que estava distraída mexendo nos amendoins, ergueu o olhar com um sorriso suave. O ambiente do Gato Preto parecia contrastar com o peso da missão que haviam concluído, mas de certa forma, trazia uma paz sombria. Ela brincou com os dedos na garrafa de cerveja, ouvindo as palavras de Jef, e finalmente se permitiu relaxar um pouco.

— Então, Jef, a gente tá realmente começando a desmontar o grupo. Parece que estamos mais perto do fim, não é?

Jef suspirou, apoiando-se no encosto da cadeira.

— Estamos sim. Mas você sabe como é. Esses caras sempre deixam, mesmo que a gente demore, a gente acha. Nem todo mundo tem a sorte de ter uma Lolis para ajudar — ele dá uma piscadinha para a amiga e continua:

— Pelo menos o tal do Y vai ver o sol nascer quadrado por um bom tempo. Na Papuda, como tem que ser. Aos poucos estamos conseguindo pegar todos os envolvidos no chat do Esquadrão Y. Foi difícil rastrear os desgraçados com toda aquela criptografia, mas ninguém consegue se esconder da internet pra sempre.

Lolis recostou-se na cadeira, brincando com a garrafa de cerveja na mão. A luz vermelha refletia nos óculos dela enquanto observava o movimento suave da fumaça de incenso pelo bar.

— Esses moleques burros realmente acharam que estavam intocáveis, né? — ela comentou, dando um sorriso cansado. — Mas como você disse, Jef, ninguém consegue se esconder de verdade.

Carine olhou para os dois, um sorriso discreto surgindo em seu rosto enquanto mexia no rótulo da garrafa de cerveja. Era um alívio saber que tudo estava perto do fim.

— Pelo menos uma parte da missão tá feita — ela disse, finalmente relaxando um pouco. — Mas ainda temos que ver como isso vai se desenrolar.

Jef deu de ombros, tomando mais um gole.

— A gente fez o que podia por enquanto. Pegamos os caras, e agora eles vão ter que se explicar. Mais cedo ou mais tarde, toda essa sujeira vai vir à tona.

O silêncio caiu sobre a mesa por alguns instantes, enquanto eles saboreavam a sensação de missão cumprida, mesmo que temporária. O barulho de conversas baixas e a música suave ao fundo preenchiam o espaço, criando um ambiente confortável.

Jef olhou para Carine com um olhar curioso e inclinou-se um pouco para frente.

— E a Laura, hein? Não vi mais vocês duas juntas por aqui. Como ela tá?

Carine hesitou por um segundo, mexendo na garrafa antes de responder.

— Ela foi viajar... — começou, respirando fundo. — Foi pra Amazônia. Tem umas coisas que ela precisava resolver por lá. 

Jef balançou a cabeça, com um sorriso levemente melancólico.

— Amazônia, hein? Caramba. — Ele fez uma pausa, então sorriu de lado. — Ela podia ser a minha Iara... se quisesse, claro.

Carine riu, revirando os olhos enquanto dava um leve tapinha no ombro dele.

— Olha bem o que você fala da minha amiga, hien? Se machucar ela vai ter que se ver comigo. — ela disse, em um tom ameaçador.

— Ei, só tô falando a verdade! — Jef levantou as mãos em defesa, ainda rindo. — Mas, sério, espero que ela esteja bem. Vai ser estranho não ver o sorriso dela por aqui.

Carine suspirou, mas o sorriso suave ainda estava lá.

— Ela vai ficar bem. E vai voltar logo. Só precisava encontrar suas origens, vamos dizer assim.

Lolis, que estivera quieta, observando as chamas das velas tremularem, sorriu e olhou para Carine.

— Enquanto ela não volta, você tá com a gente, Ginger girl. — disse Lolis, piscando para Carine.

— Claro que sim. — Carine respondeu, rindo de leve. — Vocês dois são minha nova distração, pelo visto.

Jef levantou a garrafa e sorriu.

— Um brinde à Laura e ao que vem por aí — disse ele, com um toque de esperança na voz.

As canecas se chocaram suavemente no brinde, e por um breve momento, o trio se permitiu relaxar sob as luzes vermelhas do Gato Preto. Eles sabiam que ainda havia muito por vir, mas naquele instante, a vitória de ter capturado o Capitão Y e os membros do Esquadrão Y era o que bastava para eles celebrarem.