O chamado das Runas

As runas brilharam todas ao mesmo tempo.

Não houve aviso. Nem aurora.

Apenas uma onda silenciosa que percorreu todas as dimensões — vibrando no centro do peito de cada Guardião como um sussurro ardente.

Elira largou o frasco que segurava e levou a mão à runa serpente que pulsava sobre sua pele.

Nyara, em silêncio, ergueu a cabeça com os olhos atentos.

— Eles nos chamam…

Na entrada da Dimensão da Matéria, Askar treinava com Arak em meio à névoa quando caiu de joelhos.

Sua runa do lobo queimava, viva como nunca.

Arak se aproximou, em alerta.

— Não é dor. É ordem.

Askar assentiu, o olhar sério.

— Os Ancestrais nos convocam.

No jardim suspenso entre as espirais da luz, Lúmina parou no meio de uma leitura. Os códices flutuavam diante dela, mas seus olhos estavam fixos na runa de unicórnio em seu braço.

— Eles querem falar.

Eryel se aproximou lentamente, o passo firme e leve.

— Já passou da hora.

Na escuridão das Trevas, Kaelith fechava o punho quando sentiu a queima em sua runa de dragão.

Ela não ardia. Ela rugia.

— Chamado dos céus? Que ironia…

Zhaerion apareceu em meio à fumaça.

— Se nem o abismo pode ignorá-los, você você tampouco consegue.

Kaelith soltou um suspiro pesado.

— Então que seja.

Na Dimensão da Luz, o véu se abriu.

Os quatro Guardiões adentraram em silêncio absoluto, um a um, atravessando os portais espirais com a reverência de quem pisa onde não deve.

A luz os envolveu. O tempo os desacelerou. As palavras cessaram.

Ali, apenas a vibração falava.

No centro da dimensão, os cinco Ancestrais os aguardavam — intocáveis, imóveis, envoltos por suas próprias auras.

Lumys foi o primeiro a se manifestar — sua presença envolvia o ar como um tecido macio que pressionava a alma.

— Vocês foram forjados com essência humana, mas não foram moldados para se perder nela.

Kaor, o Ancestral do Fogo, completou:

— A centelha que receberam foi medida. Equilibrada. Mas agora… ela queima demais.

Naelya falou logo em seguida, a água fluindo por suas palavras mentais:

— Estão esquecendo o que são. E por que foram criados.

Orunn fez tremer o chão sob seus pés:

— A fundação já rachou. O ciclo pode se romper.

Zephiron, sutil como o ar, sussurrou:

— Há algo além do véu… algo que desperta. Algo que sente a fraqueza de vocês.

A presença de Lumys preencheu o ar novamente — intensa, serena, incontornável.

— É hora de despertarem.

É hora de lembrarem por que foram criados…

E para o que realmente foram forjados.

A vibração percorreu a pele dos Guardiões como um chamado antigo — familiar e irreversível.

Kaor ergueu sua mão flamejante e concluiu:

— Nos próximos ciclos, vocês retornarão ao Ritual da Fusão primordial

Orunn, com voz grave como rochas ancestrais, explicou:

— Não é algo novo para vocês. Este ritual sempre foi parte do caminho.

Não acontece todos os dias, mas, quando convocado, serve para reacender o elo entre Guardião e Familiar —

a essência que os une… e os fortalece.

Zephiron soprou palavras que não se ouviam, mas que dançavam na alma:

— Fundidos, vocês se enfrentam.

Guardião e Familiar tornam-se um só.

O duelo os lembra do que são feitos.

E do que ainda precisam se tornar.

Naelya, fluindo como água entre as dimensões, murmurou:

— A fusão não é apenas força.

É reconhecimento, memória e entrega.

Os Guardiões se entreolharam.

Elira sentiu Nyara se enroscar levemente ao redor de sua perna, como quem compreendia sem palavras.

Askar assentiu em silêncio, Arak ao seu lado como um espelho calado.

Lúmina respirou fundo, os olhos fitando o véu, enquanto Eryel se aproximava em silêncio, pousando o focinho em seu ombro com ternura antiga.

Kaelith inclinou levemente a cabeça. Zhaerion rosnou, mas não discutiu.

O silêncio caiu sobre os quatro Guardiões.

Ninguém ousava falar.

Nem Elira.

Nem Askar.

Nem Lúmina.

Nem Kaelith.

Porque todos sabiam.

Estavam mudando.

E essa mudança… podia ter um preço.

A luz se dissipou lentamente enquanto os portais espirais os conduziam de volta às suas dimensões.

E ali, em cada fragmento de existência, algo permanecia latente — pulsando nas entrelinhas da alma.

Vozes Que Sussurram Além da Alma

Quando os Guardiões dormem ou se calam, são seus familiares que observam — e sentem.

Na clareira da Dimensão Mística, onde os véus do tempo são mais finos e as folhas cintilam com o orvalho encantado, quatro sombras místicas se encontraram sob o luar.

Nyara, a serpente flamejante de Elira, deslizava suavemente sobre as pedras quentes, ajeitando suas escamas com movimentos graciosos.

— “Eu não sei vocês, mas minhas escamas perderam o brilho desde que Elira começou a suspirar com aquele ar aéreo por Askar. Não consigo manter a chama viva assim.”

Ela fez um giro elegante com o corpo, deixando a cauda formar um arabesco flamejante no ar.

— “E olha que eu sou fogo, meu bem. Mas até a serpente mais quente precisa de estabilidade emocional pra brilhar.”

Arak, o lobo de pelagem cinza-prateada, deitou-se em silêncio por um momento, depois rosnou baixo — não por raiva, mas por contenção.

— “Askar anda errando golpes de treino e jogando a culpa em mim. Diz que sou eu que não ataco na hora certa.”

Ele suspirou.

— “Mas a verdade é que o coração dele treme antes da lâmina. E eu sinto. Ele não quer admitir, mas está apaixonado. E mais… ele tem medo.”

Eryel, o unicórnio de Lúmina, surgiu devagar entre os arbustos com sua crina perolada ondulando ao vento. Ele parecia sempre um pouco cansado… do amor.

— “Lúmina sofre por dentro… e adivinha quem sofre junto?”

— “Eu.” — ele respondeu a si mesmo, com um suspiro dramático.

— “Eu, que não pedi isso. Eu, que só queria pastar em paz sob as estrelas da Dimensão da Luz. Mas não. Agora fico chorando ao lado de uma moça que sonha com Askar enquanto mexe nas flores da manhã. O amor dela me arrasta, e eu? Eu choro… com dignidade, mas choro.”

Por fim, uma gargalhada ecoou do alto de uma rocha.

Zhaerion, o dragão colossal de Kaelith, repousava com as asas semi-abertas, com um olhar de puro deboche.

— “Vocês reclamam demais.”

Ele esticou as garras, afiando-as no ar como quem penteia o ego.

— “O meu aqui tá insuportável. Anda quebrando coisas, gritando com corrompido por nada… e ontem, pasmem, ficou encarando a Elira por cinco minutos inteiros sem piscar. Eu contei.”

Nyara ergueu a cabeça, surpresa.

— “Sem piscar?”

— “Sem piscar.” — confirmou o dragão.

— “Achei que fosse virar pedra. E o pior: depois foi bater em três corrompidos só porque ela ignorou ele. Ah, o amor…”

Eryel soltou um relincho melancólico.

— “Esse amor… é uma poção perigosa.”

Arak rosnou novamente.

— “É um campo de batalha.”

Nyara sibilou, ajeitando mais uma vez suas escamas douradas.

— “É o brilho que enfraquece. Mas que também aquece.”

Zhaerion soltou uma baforada de fumaça.

— “Ou que torra tudo mesmo. Vai saber.”

Os quatro permaneceram ali, lado a lado, diferentes como os elementos que representavam — mas unidos pelo mesmo laço:

a ligação profunda e inquebrantável com seus Guardiões.

Eles sabiam que a essência humana havia florescido.

E, ainda que não dissessem aos seus, eles também estavam… sentindo demais.

E enquanto os familiares partilhavam suas dores em silêncio sob o luar encantado, uma presença antiga despertava nas bordas do tempo.

Lumys, o Ancestral do Espírito, deixou que sua essência fluísse além dos véus, ecoando nas correntes do ar onde só as almas podiam alcançar.

Foi uma vibração suave, antiga, que atravessou o tempo e tocou os familiares com ternura e firmeza.

Eles sentiram.

Não foi uma ordem…

Foi um sussurro antigo, impresso direto na alma:

“A essência se agita.”

“Os elos… estão confusos.”

“É tempo de alinhar a alma à origem.”

“A fusão deve acontecer.”

“Vocês… são os condutores da lembrança.”

“Lembrem aos Guardiões quem realmente são.”

As palavras não vieram de fora.

Surgiram de dentro — como uma memória que desperta sozinha, sem jamais ter sido esquecida.

E então… tudo silenciou.

O orvalho cessou sua queda.

As folhas pararam de se mover.

Até o tempo pareceu prender a respiração.

No coração dos familiares, a vibração ainda ecoava — como um sussurro antigo.

Os quatro familiares se entreolharam, em silêncio.

Eles sabiam o que a Fusão Primordial exigia.

Não era apenas vínculo ou afeto.

Era selvageria ancestral.

Era instinto bruto.

Era a força primitiva de suas origens sendo canalizada sem filtros, sem máscaras, sem piedade.

E seus Guardiões…

Estavam frágeis.

A essência humana os havia tornado mais vulneráveis.

Um único erro…

E a fusão poderia se tornar destruição.

Mesmo assim, nenhum deles recuou.

Porque sabiam: o verdadeiro pacto não é feito quando tudo está alinhado.

É feito quando se escolhe permanecer…

Mesmo quando o outro está em pedaços.

E foi assim que, mesmo em silêncio, as criaturas místicas compreenderam com o coração:

era chegada a hora de lembrar seus Guardiões do pacto que os formou.