O Ritual do Elo Entre a Fúria e o Desequilíbrio

Na manhã seguinte, os quatro Guardiões do Equilíbrio e seus familiares já estavam reunidos no vasto campo de treinamento da Dimensão da Mística. O solo era firme, salpicado de cristais enterrados e delimitado por pilares antigos que armazenavam o eco dos duelos passados. Um vento solene soprava entre as colinas, como se os próprios Ancestrais observassem.

O Ritual da Fusão Primordial não era uma simples união. Era uma cerimônia ancestral, realizada apenas em solo mítico, onde a magia era mais densa e a essência dos Guardiões, mais selvagem do que espiritual ou humana.

Não se tratava da Fusão Instintiva — aquela que ocorria naturalmente entre Guardião e Familiar em batalhas, momentos de urgência ou proteção.

O Ritual da Fusão Primordial ia além.

Ali, não bastava conexão emocional ou sintonia energética. Era necessário entregar-se ao instinto bruto, permitir que os quatro elementos ancestrais — fogo, água, terra e ar — assumissem o controle da essência.

Durante o ritual, Guardião e Familiar tornavam-se uma única entidade. Um só corpo. Uma só alma.

E então, fundidos, se enfrentavam.

Não por rivalidade, mas por lembrança.

Para reacender a origem.

Para despertar aquilo que havia sido esquecido.

Pois era no confronto que se revelava a verdade mais antiga:

Só quem conhece sua própria essência pode proteger a dos outros.

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A fusão era mágica, visualmente impactante. Ao se unirem, os Guardiões ganhavam traços físicos de seus familiares — uma manifestação visível da simbiose entre suas almas.

A Fusão

Elira foi a primeira.

Quando Nyara deslizou até ela, suas escamas faiscavam com brasas douradas. A fusão ocorreu em um clarão avermelhado. As íris de Elira tornaram-se verticais, como as de uma serpente. Escamas delicadas surgiram sobre os ombros e pulsavam em tons alaranjados. Seus cabelos ondulados se alastraram como uma labareda viva, dançando mesmo sem vento. O calor ao redor dela se tornou palpável.

Askar fundiu-se com Arak em silêncio. Sua forma ganhou presença bestial. Os olhos âmbar se tornaram mais intensos, com pupilas ainda mais afiadas. Presas lupinas brotaram sob os lábios, garras surgiram nas mãos, e um cauda espessa despontou sob a túnica de batalha. Os músculos estavam tensionados como cordas prestes a romper. Ele parecia um lobo em forma quase humana — instintivo, feroz e atento.

Lúmina caminhou até Eryel, que trotava suavemente, e o toque entre eles invocou uma névoa clara e cintilante. A fusão a deixou mais etérea: os cabelos flutuavam mesmo sem vento, com fios perolados entrelaçados aos lilases. Um pequeno chifre de cristal surgiu no centro da testa, e seus olhos assumiram um brilho lilás, como se refletissem constelações distantes. Pétalas de luz orbitavam seu corpo.

Kaelith fundiu-se a Zhaerion com um rugido abafado. A energia escura se expandiu como um raio contido. Suas veias brilharam em vermelho profundo. Escamas enegrecidas apareceram por seu torso e braços, seus olhos ganharam brilho rubro, e asas semitranslúcidas se abriram atrás dele — não inteiras, mas fragmentadas, como relíquias de um poder contido. O ar ao redor dele oscilava, como se resistisse à sua presença.

Nível Um – A Convergência

O duelo inicial, coletivo, era simbólico. Os quatro se enfrentaram juntos para testar habilidades em conjunto, ritmo e sincronia.

Labaredas se chocaram com investidas lupinas. Ventos perfumados colidiram com rajadas de energia sombria. Era impossível dizer quem levava vantagem.

Após minutos de combate, todos recuaram. Suados. Ofegantes. Mas inteiros.

— “Empate.” — disse Elira, com a respiração firme, limpando uma mecha flamejante do rosto.

— “Sempre é.” — murmurou Kaelith, os olhos semicerrados.

Nível Dois – O Duelo Cruzado

Agora, os duelos seriam entre guardiões de gêneros opostos.

Primeira batalha: Lúmina vs. Kaelith

Lúmina deslizou graciosamente pelo campo, seus passos levíssimos. Mas ao encarar Kaelith, viu mais do que força — viu fúria contida.

Eles se enfrentaram. Lúmina tentou encantá-lo com rajadas de luz e ilusões florais, mas Kaelith rompeu tudo com brutalidade sombria.

— “Você deveria saber…” — murmurou Askar à margem. — “Que não se entra em duelo com Kaelith se ele estiver fundido a Zhaerion. Você perde antes de começar.”

Lúmina caiu ajoelhada, exausta. Kaelith estendeu a mão para ajudá-la, mas ela se levantou sozinha.

— “Não me subestime.” — disse ela, com orgulho ferido.

— “Eu não subestimo.” — respondeu ele. — “Eu respeito.”

Segunda batalha: Kaelith vs. Elira

As duas forças opostas colidiram como trovão e relâmpago. Escamas contra escamas. Fúria contra controle. Mas dessa vez, Elira foi mais ágil.

Com um giro serpentino e uma rajada de calor, ela derrubou Kaelith no chão.

Lúmina estreitou os olhos.

— “Você perdeu de propósito.” — acusou.

Kaelith não respondeu. Apenas sorriu com a lateral da boca, o olhar fixo em Elira por tempo demais.

Terceira batalha: Lúmina vs. Askar

Foi o duelo mais silencioso. Lúmina estava mais atenta. Mas não o suficiente.

Askar golpeou com precisão, e Lúmina foi ao chão.

— “Eu te avisei para prestar atenção nos treinos.” — disse ele, estendendo a mão.

— “Talvez eu devesse treinar com os olhos fechados…” — respondeu ela, rindo com leveza.

Quarta batalha: Elira vs. Askar

O confronto mais silencioso — e o mais íntimo.

Elira avançou primeiro, os olhos verdes faiscando como lâminas de jade. Askar não recuou. O lobo e a serpente se estudaram por trás dos olhares.

Chamas cortaram o ar. Garras responderam com precisão. O embate foi veloz, preciso… contido demais.

Mas no fim, foi ela quem venceu.

Com um salto giratório e um golpe certeiro de calor, Elira o desarmou, lançando-o de joelhos.

Ela se aproximou, o olhar firme e provocante.

— “Nem começamos… e você já quer perder?”

Askar ergueu os olhos, um leve sorriso nos lábios.

— “Talvez eu só queria ver você vencendo de perto.”

Lúmina, de braços cruzados à beira do campo, rolou os olhos e disparou:

— “Esse é o mais sem graça de todos. Não tem emoção nenhuma. Ele sempre deixa ela ganhar… Nem se esforça pra lutar.”

Nível Três – Confronto Essencial

Agora, os duelos seriam entre guardiã e guardiã… guardião e guardião.

Elira vs. Lúmina

Esse combate trouxe silêncio aos que assistiam.

Sempre fora Elira quem dominava. Mas dessa vez… Lúmina estava mais rápida. Mais poderosa. Mais decidida.

Com um golpe de luz cortante, envolta em pétalas encantadas, Lúmina venceu.

Elira caiu de joelhos, surpresa.

Lúmina se aproximou e sussurrou:

— “Eu também mudei.”

Elira sorriu.

— “E eu estou orgulhosa de você.”

Ao redor, ninguém disfarçava o espanto. Elira nunca perdia.

Agora… restava o último duelo:

Askar vs. Kaelith.

Askar sequer teve tempo de se preparar. Respirava fundo, tentando ajustar o ritmo da energia que ainda pulsava entre ele e Arak.

Kaelith, por outro lado, não esperou.

Num movimento abrupto, avançou com a brutalidade de uma tempestade noturna. Suas asas se expandiram em sombras, e as escamas em seus braços cintilaram com fúria contida. Ele veio como um raio, direto sobre o oponente.

Askar rolou para o lado, desviando por pouco, mas a pressão era sufocante. Kaelith não lutava apenas com o corpo. Ele explodia com raiva. Cada golpe era uma cobrança, cada ataque uma sentença.

Elira, do outro lado do campo, sentiu seu peito apertar. Seus olhos se arregalaram, não por admiração, mas por espanto.

— “Ele está mais forte do que nunca…” — sussurrou. Não era fascínio. Era receio.

Ela conhecia aquele olhar em Kaelith. Aquela raiva não era só por competir. Era pessoal. E Askar… podia se machucar de verdade.

A luta seguiu brutal.

Garras contra garras. Presas contra presas. Os dois rugiam, meio humanos, meio feras. O campo vibrava a cada impacto.

De repente, no plano interior onde os familiares se conectavam, uma voz soou.

Arak, em tom tenso:

— “O que está fazendo, Zhaerion? Ele vai matá-lo!”

Zhaerion, frio, respondeu:

— “Eu não tenho escolha. Estou fundido. Eu só sigo os comandos. E ele quer vencer.”

Um rugido cortou o ar.

Kaelith girou o corpo em uma manobra veloz e sombria, concentrando sua energia no punho escamado — um golpe devastador, selado com a fúria acumulada.

O impacto foi seco e profundo.

Askar e Arak foram arremessados como se o chão tivesse cuspido ambos. A fusão foi desfeita no ar, rompida pela força do golpe. O corpo de Askar caiu com violência sobre o campo, e Arak foi lançado para o lado oposto, onde permaneceu inerte.

— “Askar!”

Elira e Lúmina gritaram juntas, levantando-se num salto. A vibração no campo cessou por completo. O silêncio pesava como chumbo.

Elira correu, mas antes que pudesse alcançá-lo, uma sombra surgiu em sua frente.

Kaelith.

Imponente. Intocável.

— “Não foi nada grave.” — disse ele, encarando Elira nos olhos, a voz baixa, mas firme. — “Ele está vivo. Apenas estava fraco. Distraído.”

O tom era ácido, mas calculado. Ele não queria se justificar. Queria ser ouvido.

Lúmina não esperou.

Passou por eles e se ajoelhou ao lado de Askar, que começava a recobrar a consciência com um gemido. Seus olhos se abriram devagar, ofuscados pela luz. Ele tentou se erguer, mas logo murmurou:

— “Arak…”

Todos se viraram.

Arak estava desacordado.

Estendido sobre o campo, o lobo ancestral respirava com dificuldade, uma das patas tremia levemente.

Foi a primeira vez, em todos os rituais, que a fusão foi rompida à força. E pela primeira vez… um Familiar caiu.

O campo de batalha não era mais apenas um treino. O equilíbrio… começava a ruir.

O campo permanecia em silêncio absoluto.

Elira, Lúmina e Kaelith ainda de pé. Mas Askar…

Ele cambaleava até o local onde Arak, seu familiar acinzentado de pelagem prateada, jazia imóvel no chão, o corpo pesado e ainda fundido com resquícios de energia espiritual rompida.

Sem hesitar, Askar se ajoelhou e puxou o lobo para seus braços, segurando sua cabeça com cuidado, como se tocasse o próprio coração.

— “Arak… Acorda. Por favor… me responda. Volte para mim.”

Sua voz quebrou o silêncio como um clamor desesperado.

Elira se aproximou rapidamente. Suas mãos se iluminaram com o brilho dourado de sua energia curativa, e Nyara deslizou pelo solo como uma chama viva. A serpente se enrolou delicadamente ao redor de Arak, canalizando sua própria energia para ajudar.

— “Fique firme… vamos trazê-lo de volta.” — sussurrou Elira.

Lúmina virou-se para Kaelith, os olhos arregalados de indignação.

— “O que você fez?” — disparou. — “Você quase selou um Guardião e um Familiar. Perdeu o controle.”

Kaelith cruzou os braços, a expressão fria.

— “Não fiz nada demais. Usei meus poderes. Ele está fraco.”

— “Talvez devesse se concentrar no que realmente importa… em vez de correr atrás do que nunca foi seu.”

A frase cortou como lâmina.

Askar ergueu o olhar, ainda com Arak nos braços.

— “E você… deveria aprender a canalizar sua fúria para proteger seus próprios portões… em vez de tentar ferir quem não lhe pertence.”

Elira se levantou num impulso, a voz firme e autoritária.

— “Chega! Isso já passou dos limites! Nosso irmão precisa de cuidados, agora!”

Um silêncio pesado caiu entre eles.

Sem mais palavras, todos se mobilizaram.

Zhaerion se aproximou com suas asas abertas e corpo firme. Askar, com a ajuda de Lúmina e Elira, colocou cuidadosamente Arak sobre as costas do dragão colossal.

E então partiram — em direção à Câmara da Cura.