Zhaerion voava baixo, as asas abertas protegendo o corpo imóvel de Arak. O campo ainda tremia com os ecos da batalha, os Guardiões e demais familiares o seguiam em silêncio absoluto
A entrada da Câmara da Cura era esculpida diretamente no rochedo mais antigo da Dimensão da Mística.O interior exalava um brilho pulsante, suave e dourado, como se o próprio tempo desacelerasse ali dentro. Elira foi a primeira a entrar, seguida de perto por Lúmina, Askar e Kaelith.
Sem dizer palavra, Elira estendeu os braços e, com o auxílio de Nyara, envolveu Arak em um casulo de luz, semelhante a uma bolha viva. A serpente deslizava ao redor do lobo desacordado, canalizando energia curativa por meio de runas flamejantes que dançavam no ar.
Zhaerion manteve-se em silêncio, mas não afastou o olhar. Mesmo sem experimentar sentimentos humanos, algo nele se movia — uma inquietação sutil. Ele e Arak partilhavam uma antiga ligação de respeito mútuo. A rivalidade entre Kaelith e Askar nunca se estendia aos familiares. E ver o lobo naquele estado… causava incômodo.
Enquanto Arak era tratado, Elira, ofegante, voltou-se aos demais. Com movimentos precisos, começou a curar os pequenos ferimentos de Askar e dos outros. Ninguém falava. O peso da batalha recente pairava no ar, espesso como névoa.
Foi então que a voz de Zhaerion ecoou apenas dentro da mente de Kaelith:
— O que você fez foi perigoso.
Kaelith manteve a expressão impassível, mas os olhos brilharam em um tom mais profundo de vermelho.
— Você está indo longe demais. E tudo isso por causa dela.
Kaelith não respondeu.
— Você quer Elira a qualquer custo — insistiu o dragão, direto. — Isso está nublando seu julgamento. Está se deixando levar… por algo que nem você entende.
Kaelith voltou a se manifestar:
— Eu lutei normalmente. Ele estava fraco e distraído a ponto de se desconectar do próprio familiar. Enquanto eu me concentrava na minha performance, ele não tirava os olhos de Elira. Por isso recebeu o golpe com tanta intensidade.
Kaelith franziu o cenho. O silêncio mental que seguiu foi tão denso quanto o da câmara.
— Você está confuso, Kaelith. E, honestamente… está ficando patético!
Kaelith cerrou os punhos.
— Cale-se — rebateu mentalmente, em tom áspero.
Zhaerion riu com sarcasmo:
— Mas eu nem falei em voz alta…
Kaelith se virou, encarando a cúpula luminosa onde Arak repousava. Seus olhos carregavam algo novo. Uma mistura incômoda de dúvida e algo mais profundo — algo que ele se recusava a nomear.
Do outro lado da sala, Nyara se enroscava devagar ao redor de Elira, envolvendo-a com ternura. Elira, exausta, se permitiu respirar fundo, sentindo a vibração da energia estabilizar.
Askar observava tudo em silêncio, mas o olhar estava fixo em Arak.
O desequilíbrio permanecia. Crescendo. Silencioso como o olhar de um dragão apaixonado.
Zhaerion permaneceu em silêncio por um instante, antes de retrucar:
— Então é isso que você chama de autocontrole? Querer vencer a qualquer custo, mesmo que isso destrua o equilíbrio que jurou proteger? Se estava tentando chamar a atenção de Elira… ou encantá-la com sua força… falhou miseravelmente.
Kaelith apertou os olhos, mas não respondeu.
O silêncio foi pesado.
Zhaerion mantinha-se imóvel no canto da câmara, mas seus olhos…
Ah, seus olhos não mentiam.
Estavam fixos em Askar, como se atravessassem a couraça de carne e osso e tocassem diretamente sua essência.
Por um breve momento, brilharam em vermelho contido — um brilho que não era de raiva, mas de julgamento.
E então, veio a voz.
Não foi falada. Não foi sussurrada.
Foi sentida.
— Você é o culpado por isso.
Askar piscou, o coração falhando um compasso.
Zhaerion ainda o encarava, mas sua expressão era neutra — como se nada tivesse acontecido.
Mas Askar sabia. Sentira aquilo diretamente em sua alma.
A câmara estava mergulhada em um silêncio denso, apenas quebrado pela pulsação suave da bolha de cura que envolvia o corpo de Arak.
De repente, a bolha tremeu.
— Está funcionando… — sussurrou Elira.
Um estalo de energia ecoou pela câmara. E então —
Arak despertou.
Mas não foi um despertar suave.
O lobo abriu os olhos com um rosnado baixo, os músculos se contraindo, a respiração acelerada. Seu corpo ainda brilhava com resquícios do feitiço de cura, mas sua alma… sua alma ainda estava em batalha.
Num movimento veloz, ele saltou para fora da bolha, rompendo a barreira energética com um estalo seco. Avançou como um raio, posicionando-se à frente de Askar, dentes à mostra, patas cravadas no chão e os olhos cravados em Kaelith.
Todos congelaram.
Zhaerion se moveu levemente, como se sentisse a tensão subir.
— Arak… — sussurrou Askar, dando um passo adiante. — Está tudo bem. Já passou.
Mas o lobo não respondeu de imediato. Seu corpo tremia, não de fraqueza, mas de memória.
Kaelith apenas o observava, impassível.
Pouco a pouco, Arak baixou a cabeça. Olhou para trás, para Askar. Suas orelhas se inclinaram.
— Eu tô aqui. E você voltou.
Zhaerion se aproximou, as asas recolhidas, imponente em sua forma de dragão ancestral. Curvou-se diante de Arak — um gesto raro.
— Perdão, irmão. A fúria de meu Guardião vazou por mim. Não era minha intenção.
Arak o encarou por um instante e respondeu em pensamento:
— Não temos culpa nem controle do que está despertando entre eles. Apenas seguimos os laços que nos foram dados.
Zhaerion assentiu e recuou com dignidade.
Askar se ajoelhou e envolveu o pescoço de Arak num abraço firme, de irmão, de alma.
— Me perdoa, meu companheiro… Eu falhei com você. Não sustentei nossa fusão. E você pagou o preço por minha distração.
O lobo fechou os olhos e respondeu mentalmente, com voz carregada de sentimento:
— Você é meu elo. Meu lar. Mas nunca se esqueça: lutar com o coração dividido é o mesmo que entregar a vitória ao inimigo.
Pela primeira vez desde o início do ritual, o campo da cura estava em paz.
Kaelith lançou um último olhar a todos, como se confirmasse que não havia mais nada a ser dito.
— Zhaerion, vamos.
O dragão ancestral se ergueu com suavidade, ainda pesado no ar, mas sereno. Juntos, os dois deixaram a câmara, cruzando os arcos de pedra em silêncio.
Lúmina, sem trocar palavras, acariciou o focinho de Eryel, o unicórnio cintilante, e também se retirou. Seus passos eram silenciosos, mas havia rigidez nos ombros que denunciava sua inquietação. O brilho suave do unicórnio iluminava o corredor até ambos desaparecerem.
Os demais permaneceram.
Elira, com as mãos apoiadas sobre os joelhos, observava a bolha onde Arak descansava. Então, sentiu a presença ao lado. Era Askar.
— Eles estão mais fortes — disse ele.
— Eu sei — respondeu ela. — Mais fortes do que já foram.
— Não é apenas força física… é a essência que vibra dentro deles. Está transbordando.
— Lembra dos ensinamentos dos Ancestrais? Que nossa essência interior molda não só nossos poderes, mas também o elo com nossos familiares?
Elira assentiu devagar.
— Se estamos conectados à fúria, ao ciúme, ao medo… nossa ligação se torna mais intensa. Porque é isso que os familiares são: selvageria pura. Eles se alimentam de emoções cruas.
— E quando amamos demais… — completou Askar — quando sentimos ternura, hesitação… nos tornamos vulneráveis. Porque entramos em conflito com o que nos molda.
Elira abaixou o olhar.
— A essência que deveria nos guiar está nos enfraquecendo…
— E a deles… os está tornando imparáveis.
O silêncio que se seguiu não era vazio.
Era consciência.
Era pressentimento.
Elira suspirou, a voz mais baixa agora, quase uma prece:
— “Precisamos ser fortes… e acabar com isso. Pela nossa fraqueza, inocentes estão pagando o preço.”
Seus olhos se voltaram instintivamente para Arak, que dormia envolto no casulo de cura. A expressão serena do lobo contrastava com as feridas ainda não cicatrizadas da alma.
Askar cruzou os braços, os olhos fixos no chão, e respondeu com uma pontada de amargura:
— “É tão fácil falar, não é? Você já tentou… parar de sentir?”
Elira virou-se para ele, com o olhar firme, mas vulnerável:
— “Precisamos tentar. Isso precisa cessar…”
Ela estendeu a mão. E, sem hesitar, ele segurou.
Os dedos se entrelaçaram como se pertencessem um ao outro desde o início dos tempos. O silêncio que caiu entre eles foi carregado de tudo o que nunca haviam dito.
Askar deu um passo à frente. Elira não recuou.
O espaço entre os dois se reduziu ao som de uma respiração contida.
— “Por favor…” — sussurrou ela. — “Tente.”
O rosto de Askar se inclinou, os olhos presos nos dela. A tensão era palpável. O toque, magnético. A vibração entre eles, inevitável.
Mas então—
Um rosnado baixo ecoou pelo ambiente.
Arak.
O lobo, mesmo adormecido, havia reagido. Seu corpo se mexia inquieto, as patas rígidas, os olhos semicerrados.
E em seguida, um sibilar estridente.
Nyara, com os olhos flamejantes, erguia a cabeça, em clara advertência.
A magia se quebrou.
Elira recuou meio passo, como se tivesse despertado de um sonho.
Askar soltou sua mão devagar. A expressão dele era de dor contida, de frustração reconhecida.
— “Vou voltar para minha dimensão.” — disse ele, em voz baixa. — “Arak vai se recuperar melhor nos nossos aposentos.”
Ele não esperou resposta. Apenas se afastou, sem olhar para trás.
Nyara deslizou ao lado de Elira, silenciosa como uma sombra quente.
A serpente pousou os olhos dourados sobre a guardiã e falou apenas para ela, em pensamento:
— “Você precisa se fortalecer. Ou outros pagarão pela sua hesitação.”
Elira fechou os olhos.
Respirou fundo.
E, quando os abriu, havia novamente determinação em seu olhar.
A guerra já havia começado…
Dentro deles.