O Beijo Que Rompeu o Véu

Elira foi a primeira a chegar à Fortaleza de Askar.

Nyara deslizava silenciosa ao seu lado, o corpo alaranjado e flamejante ondulando com leveza sobre o chão encrustado de runas vivas — como se o próprio fogo caminhasse ao lado da Guardiã.

Era cedo. O sol da Dimensão da Matéria ainda não havia se erguido por completo, tingindo o céu de um dourado frio. A brisa trazia o cheiro de folhas secas e terra molhada — um silêncio antigo pairava sobre tudo.

Elira atravessou os corredores amplos com passos firmes. Havia algo em seu semblante que misturava urgência e cuidado. Viera para avaliar o estado de Arak, mas também… para tentar entender o que não sabia nomear.

A conexão entre os guardiões estava instável. As emoções, vibrando em desequilíbrio.

E ela… precisava de respostas antes que a próxima rachadura surgisse.

Nyara parou diante de uma grande porta esculpida com símbolos de lobo. Seus olhos verdes cintilaram. Elira respirou fundo e empurrou a porta com as duas mãos.

O quarto estava parcialmente iluminado por um filete de luz que escapava pelas cortinas pesadas. As runas gravadas nas paredes pulsavam em azul-claro, como se sussurrassem antigas memórias.

Lá dentro, Askar estava de pé ao lado de Arak, que repousava sobre uma manta espessa. Ambos voltaram o rosto para ela assim que a porta se abriu.

— Vim ver como Arak está — disse Elira, esboçando um pequeno sorriso.

— Ele está se recuperando bem. Desde ontem, não demonstrou nenhum sinal de instabilidade — respondeu Askar.

— Mesmo assim… — Elira ajoelhou-se ao lado do lobo — só preciso fazer alguns ajustes. Fortalecer suas runas, estabilizar a energia vital.

Nyara se aproximou, sentando-se próxima, como se também desejasse garantir que tudo estivesse realmente em ordem.

Elira estendeu as mãos sobre Arak e murmurou palavras em uma língua ancestral. Runas douradas começaram a brilhar sobre os pelos prateados do lobo, que permaneceu sereno, aceitando a energia curativa.

Mas, no instante seguinte…

— “Ah…” — ela perdeu o fôlego, o corpo oscilando.

— Elira! — exclamou Askar, segurando-a antes que caísse.

Ela estava pálida, a respiração curta.

— O que está acontecendo? — ele perguntou, aflito.

— Não é nada… só… magia demais ontem. No campo de batalha. Estou… apenas esgotada.

Sem hesitar, Askar a tomou nos braços e a deitou com cuidado sobre sua cama, como se ela fosse feita de luz prestes a se apagar.

O silêncio que pairou depois disso… era um silêncio que gritava.

Askar ajoelhou-se ao lado da cama, os olhos carregados. Tocou delicadamente uma mecha de cabelo do rosto dela. O calor percorreu a pele de Elira como fogo líquido.

Ela abriu os olhos lentamente. Encontrou os dele. E o tempo… hesitou.

Os olhos âmbar de Askar escureceram com uma emoção que ele não conseguia mais esconder. Algo bruto, profundo — e ao mesmo tempo, terno.

Ele se inclinou. A distância entre eles era curta demais para ser ignorada.

Elira sussurrou:

— Askar…

Ele não respondeu. Apenas se aproximou mais. O toque das mãos, os olhos fixos, os corpos presos por uma tensão invisível — e então…

Nyara, enrolada em um dos pilares da fortaleza, arregalou os olhos como esmeraldas flamejantes. Seu corpo ondulou em agitação, soltando faíscas.

— Não, não, não… Elira! Escuta sua serpente! — sibilou mentalmente, erguendo o pescoço e soltando um chiado alto.

Arak, do outro lado, rosnou grave, o som reverberando pelas paredes.

Elira estremeceu… e começou a recuar.

Mas Askar não permitiu.

Com um gesto firme, segurou seu rosto com ambas as mãos — os dedos calejados tocando sua pele como se a buscassem há eras.

Seu olhar ardia.

Mas era o toque…

O toque que a incendiava por dentro.

— Não fuja mais de mim… — ele sussurrou, a voz rouca, como se algo indomável vibrasse dentro dele.

Ela tentou falar.

Mas os lábios dele chegaram antes.

O beijo aconteceu.

Feroz. Inevitável.

Como uma tempestade que atravessa tudo — mesmo quando não devia.

Foi como uma explosão contida de tudo o que haviam calado até ali — essência, pele, urgência e calor.

As mãos de Askar deslizavam pelas curvas de Elira com sede primitiva, como se quisesse memorizar cada centímetro.

As respirações se misturavam, os corpos se procuravam com urgência, e a ânsia de ir além — de ultrapassar o beijo, de perder-se por completo — vinha com força selvagem, como um rugido silencioso que nascia do instinto.

Ela não resistia mais. Apenas se perdia com ele.

O toque continuou.

Voraz.

Molhado.

Irrefreável.

Como quem se afoga no outro para sobreviver.

O ar entre eles estava denso, vibrando como um campo prestes a colapsar.

O peito desnudo de Askar subia e descia sob o peso da batalha — e da urgência que o consumia por dentro.

O suor escorria por sua pele quente, marcada pela runa do lobo que ainda ardia. A luz das chamas dançava sobre seus músculos tensionados.

Quando as pontas dos dedos de Elira deslizaram por ele… foi como tocar uma fagulha viva.

Ele não pensou.

Só sentiu.

Puxou Elira de uma vez, fazendo com que ela caísse sobre ele, as pernas entrelaçadas, o corpo encaixado.

Pele com pele.

Essência com essência.

Não havia mais filtros — apenas instinto.

— Eles vão… eles vão… NÃO! — sibilou Nyara, em pânico. — Se isso evoluir… o Véu estoura!

As carícias, antes contidas, agora transbordavam — selvagens, incendiárias. A essência de ambos se fundia em ondas que explodiam sob a pele, como se o universo vibrasse dentro deles.

As mãos de Askar desceram pelas costas dela, agarrando com firmeza as coxas, puxando-a ainda mais para si. Elira arfava contra sua boca, perdida entre suspiros e arrepios.

O tempo pareceu sumir.

Nada mais existia — nem runas, nem missões, nem medos.

Só os dois.

Naquele fragmento de eternidade em que o sentimento virou universo.

Askar deitou sobre ela, os olhos ardendo em âmbar, o coração descompassado. Os beijos se espalhavam pelo pescoço, pelos ombros, pelas bordas do vestido já desalinhado.

Elira deslizou as mãos pela nuca dele, sentindo o calor que emanava de sua pele.

Seus dedos seguiram devagar pelo contorno dos músculos dos ombros, desceram pelo braço firme… e depois pelo tórax, onde o coração de Askar pulsava acelerado.

Ela arfava baixo, os olhos semiabertos, embriagada pela conexão.

Nyara os observava à distância, imóvel, ofegante.

Arak também estava lá… paralisado.

O choque estampado em seu rosto, como se nem ele, em sua forma selvagem, soubesse como intervir.

Era como se algo invisível os tivesse congelado.

Nyara e Arak não conseguiam se mover, nem impedir, nem romper a intensidade que os envolvia.

Era como se uma força maior os silenciasse — como se, por um instante, nem mesmo seus vínculos com os guardiões fossem capazes de fazê-los parar

— Elira… — ele murmurou contra sua pele.

Ela tentou se afastar, ofegante.

— Askar… a gente…

Mas ele a puxou de volta, firme.

— Não consigo parar…

A energia vibrou entre eles como um raio cortando os véus.

Nyara virou o rosto, ofendida:

— Estou traumatizada.

— Você? Eu que vou encarar os Ancestrais — rosnou Arak.

Beijos ardentes, carícias profundas —

não apenas toques, mas transgressões veladas.

Foram o rompimento do elo.

A fenda sagrada se abrindo em silêncio.

E foi então que passos ecoaram.

Lúmina surgiu no salão, estática, como uma estátua entalhada em dor.

— O que vocês estão fazendo?

Elira e Askar se afastaram num salto, os rostos tingidos de culpa.

Eryel, o unicórnio de crina prateada, se aproximou de Nyara e Arak:

— Vocês viram tudo? Por que não impediram?

— Tentamos — respondeu Nyara. — Ela me ignorou. Emissão de risco nível cinco!

— Eu rosnei, saltei. Eles estavam colados — rosnou Arak.

Eryel virou-se para os dois guardiões, olhos trêmulos:

— Isso vai nos custar caro…

— Vocês se entregaram ao que não devia ser consumado — disse Lúmina, a voz fria como gelo. — Foram longe demais… e agora o equilíbrio ruirá.

Askar tentou falar:

— Foi mais forte que nós…

— Mais forte? — Lúmina quase riu. — Agora todos pagaremos. Vocês abriram a fenda entre as dimensões!

Foi quando o ar mudou.

Uma presença ancestral — cortante, impossível de ignorar — atravessou o ambiente como uma lâmina invisível.

Todos sentiram.

Kaelith estava se aproximando.

Elira ainda ajustava o vestido e os cabelos com as mãos trêmulas, tentando recuperar o equilíbrio da mente e do corpo.

Nyara se aproximou em silêncio, deslizando com delicadeza, colocando-se entre Elira e o olhar flamejante de Lúmina — um gesto protetor, quase instintivo.

Não era vergonha, era defesa.

Uma barreira contra o julgamento silencioso da guardiã da luz.

Askar recuou, indo até Arak, que o observava com expressão dura — um olhar carregado de desapontamento.

Lúmina permanecia imóvel. Os olhos fixos em Elira eram mais frios que a neve, mais cortantes que qualquer lâmina.

Ao seu lado, Eryel vibrava em silêncio, a aura densa.

O ambiente estava em frangalhos. O ar, pesado. As emoções, em ebulição.

Mas todos, em silêncio cúmplice, tentaram estabilizar a atmosfera.

Tentaram parecer naturais.

Como se nada tivesse acontecido.

Lúmina permaneceu estática. Mas algo em sua postura havia mudado.

O fogo em seu peito ardia em dor e indignação, mas ela conteve o rompante.

Seu olhar cortante se suavizou por um instante — não por Elira… mas por Askar.

Kaelith não podia saber.

Não agora.

Porque ela conhecia o olhar daquele que um dia fora seu aliado…

Sabia o que Kaelith sentia por Elira.

E temia o que ele poderia fazer… se visse o Guardião do Lobo tomando para si o coração da mulher que ainda queimava no dele.

Ela precisava manter a harmonia — ao menos por fora.

Quando Kaelith adentrou no quarto, Lúmina não o olhou de imediato.

Apenas ajeitou o corpo, ergueu a cabeça…

E silenciou a verdade com sua presença glacial.

O ar mudou com sua presença.

Zaerion, seu dragão, o seguia em silêncio.

— Perdi alguma reunião importante? — disse Kaelith, a voz carregada de sarcasmo.

— Estávamos discutindo o ocorrido no campo de batalha. Reavaliando… nossas ações — respondeu Askar, recomposto.

— Vim saber como está o lobo — disse Kaelith, os olhos afiados.

— Já está estável. Está tudo sob controle — disse Elira.

Mas Kaelith sabia.

Zaerion também.

Havia algo no ar. Algo que queimava em silêncio.

Antes que qualquer revelação surgisse, uma vibração percorreu o chão.

As runas sob os pés dos guardiões acenderam.

Era a convocação.

As vozes ancestrais ecoavam silenciosas.

A reunião havia sido chamada.

Kaelith ergueu uma sobrancelha:

— Demoraram a chamar. Vamos.

Os quatro guardiões e seus familiares saíram da Fortaleza de Askar, em direção à Dimensão da Luz.

Elira olhou para trás por um segundo.

Lúmina, com o olhar de pedra, deu as costas e seguiu com Eryel em silêncio — não em tristeza.

Mas em fúria.

A ruptura já estava feita.

O Véu… começava a sangrar.