A Rachadura do Véu

Após a convocação dos Ancestrais, os guardiões e seus familiares se preparavam para deixar a Fortaleza de Askar rumo à Dimensão da Luz.

O ambiente estava carregado.

Havia uma tensão densa pairando entre todos — como se o ar em si soubesse que algo profundo havia sido quebrado. Nenhuma palavra foi dita sobre o que dominava seus corações, mas todos sabiam:

O elo entre eles começava a se desfazer. O equilíbrio sutil que antes sustentava a convivência entre os guardiões agora tremia sob o peso das emoções humanas — ciúmes não ditos, sentimentos contidos, obsessões camufladas e mágoas silenciosas.

As auras, antes harmônicas, oscilavam em vibrações instáveis.

Elira e Askar carregavam a culpa.

Lúmina, a fúria contida.

Kaelith, o instinto aguçado de algo errado.

Zhaerion, como espelho fiel, sentia o mesmo.

Os familiares observavam em silêncio seus mestres — seus olhos atentos, mas incapazes de compreender por completo o que estava prestes a se desenrolar.

Mas entre os familiares, não havia atrito.

Mesmo sentindo o que seus guardiões sentiam, Nyara, Arak, Zhaerion e Eyriel permaneciam unidos. Havia entre eles um pacto silencioso — um instinto primitivo que os mantinha alinhados, mesmo quando seus guardiões se afastavam uns dos outros.

Sabendo disso, Nyara e Arak se distanciaram discretamente, caminhando entre as árvores místicas que margeavam a fortaleza.

Sabiam que precisavam conversar.

E sabiam que Eryel e Zhaerion não podiam ouvir.

A poeira do instante anterior ainda dançava no ar.

— “Você sentiu aquilo?” — sibilou Nyara, por fim.

— “Senti.” — respondeu Arak com a voz baixa. — “Um calor… uma vibração estranha. Mas não era ofensiva. Era… bonita.”

— “Eu também achei.” — ela murmurou, pensativa. — “Então por que é errado?”

Arak fechou os olhos por um momento.

— “Porque não é o amor que destrói. É o que ele abre.”

— “Como assim?” — a serpente ergueu levemente o corpo, a cauda ondulando no chão.

— “Eles ficam vulneráveis.” — respondeu o lobo. — “Emocionalmente expostos. Mais lentos. Mais impulsivos. Mais fáceis de ferir. E pior… de serem usados.”

— “Então é isso?” — sussurrou Nyara, quase com tristeza. — “É por isso que os Ancestrais temem a essência humana?”

Arak assentiu lentamente.

— “É por isso que eles temem o que vem depois.”

Enquanto isso, no centro da Dimensão da Luz, os Ancestrais já se encontravam reunidos no Círculo Etéreo. Cada um em sua forma original, envoltos pelas respectivas auras elementais, flutuavam em silêncio.

O chão de cristal sob seus pés tremia com um leve pulsar.

No centro, uma rachadura tênue brilhava sob a runa primordial.

— “Algo se partiu…” — murmurou Zephiron, senhor dos ventos. — “O véu está trincado.”

— “Mas ainda não sabemos o motivo…” — completou Orunn, a força da terra.

— “Sabemos apenas que a essência desequilibrou.” — disse Naelya, guardiã das águas. — “As emoções deles estão à flor da pele… algo os fez ruir.”

— “Foi um abalo profundo…” — disse Kaor, senhor do fogo, os olhos ardendo. — “Mas não sabemos onde atingiu.”

— “Ainda assim, não podemos ignorar.” — concluiu Lumys, o Espírito. — “Eles devem ser chamados. Devem ser alertados… novamente.”

Minutos depois, os portais se abriram.

Os quatro guardiões e seus familiares atravessaram a entrada da Dimensão da Luz ao lado de seus familiares. Nenhuma palavra foi dita. O silêncio entre eles era mais gritante que qualquer explicação.

Lúmina caminhava à frente, o semblante endurecido. Seus olhos evitavam os de Elira e os de Askar, mas algo em sua aura denunciava o turbilhão que a corroía por dentro — um misto de decepção, fúria e proteção.

Elira mantinha a cabeça baixa. As mãos trêmulas ainda seguravam a barra do vestido. Nyara, enroscada a seus pés, mantinha-se em alerta, como se quisesse protegê-la da atmosfera hostil que se avizinhava.

Askar vinha logo atrás, os passos firmes mas o olhar ausente. Arak caminhava ao seu lado em silêncio, os olhos âmbar fixos no horizonte.

Kaelith, por outro lado, observava tudo. Ele não sabia o que acontecera… mas sabia que algo havia mudado.

Ao se posicionarem no Círculo Etéreo, o ambiente os envolveu em luz pálida. As runas começaram a girar ao redor, ressoando suavemente com as vibrações do véu.

Lumys foi o primeiro a falar:

— “O Véu trincou.”

Os guardiões se entreolharam em silêncio. Nenhum ousou responder.

Kaor deu um passo à frente, seu olhar flamejante varrendo cada um deles.

— “Vocês não estão mais em sintonia. Suas emoções, antes contidas, agora os expõem.”

Naelya, serena como um lago em noite escura, falou suavemente:

— “É natural sentir. Mas o descontrole… abre portas.”

Zephiron, com sua voz cortante como o vento frio, completou:

— “Portas que não podem mais ser fechadas.”

Orunn, firme como uma montanha, declarou:

— “A essência humana é necessária. Mas deve ser domada, não deixada correr livre como um rio em fúria.”

Por fim, Kaor concluiu, com os olhos fixos em Elira e Askar:

— “Se continuarem assim… o que está por vir destruirá não só vocês, mas tudo ao redor.”

O impacto foi imediato:

Elira sentiu as palavras como uma lâmina fria atravessando seu peito. Seus dedos se fecharam com força ao redor da barra do vestido, tentando conter a dor muda em seu coração.

Askar manteve a postura, mas sua mandíbula se contraiu — um gesto sutil de quem luta para não ruir por dentro.

Lúmina apertou os punhos, os olhos ardiam. Não por culpa… mas porque se sentia traída por algo que nunca teve.

Kaelith, com os olhos semicerrados como fendas, analisava cada um, como uma fera prestes a atacar — ou fugir.

Zhaerion, ao lado dele, rosnou baixinho, em sintonia.

Nyara e Arak observavam, aflitos. Havia peso nos olhos dos dois. Culpa.

Sabiam que tinham falhado. Que viram a linha ser cruzada… e não conseguiram impedir.

Zhaerion e Eryel permaneciam imóveis, absorvendo silenciosamente cada vibração de seus guardiões — como espelhos vivos, refletindo a tormenta interior sem jamais se quebrarem.

O ar tremia.

Lúmina fechou os olhos por um instante, tentando conter a verdade que ardia dentro de si. Não por si… mas por Kaelith.

Ela conhecia aquele olhar.

Sabia que, se ele soubesse… a ruína viria antes da redenção.

Pouco depois, o portal de cristal se abriu, e os guardiões atravessaram novamente, retornando à Dimensão Mística.

Ao atravessarem o portal, os passos de Elira soaram abafados sobre o chão enfeitiçado da trilha ancestral. O silêncio entre os guardiões era mais espesso que a névoa que se erguia dos campos dourados.

Nenhum deles ousava falar — não por falta de palavras, mas por medo do que poderia ser dito.

Foi então que Elira parou. Virou-se para os outros e, com o coração apertado, quebrou o silêncio:

— “Precisamos parar com isso.”

O silêncio reverberou como uma onda.

Lúmina não respondeu de imediato, mas seus olhos faíscaram. Uma onda de indignação percorreu seu semblante. Ela pensou — e só não disse em voz alta porque Kaelith estava ali —:

“Sim… precisamos, antes que você e Askar consumem o ato mais infame que já se abateu sobre esse ciclo.”

Eryel, que sentia tudo, estremeceu. Seus pelos brancos se eriçaram como se algo invisível o tocasse.

Askar, porém, manteve-se ereto. Encostou levemente uma das mãos na runa do peito e respondeu com serenidade:

— “Sim… precisamos. Concordo. Você tem razão.”

Lúmina, por fim, soltou um suspiro áspero.

— “Mas já tentamos todas as poções, encantamentos, feitiços. Nada funcionou. O máximo que conseguimos foi conter o véu…” — ela olhou para o chão, e depois para Elira e Askar ao mesmo tempo. — “…mas a essência continua. Como um vulcão à beira da erupção. A cada dia… estamos mais expostos.”

Nyara e Arak se entreolharam em silêncio, absorvendo as palavras.

Zhaerion, que até então permanecera quieto, ergueu lentamente a cabeça, observando os guardiões. Ele sentiu. Algo havia sido consumado.

Kaelith apertou o punho. Seus olhos percorreram todos ali, detendo-se por um instante em Zhaerion, que assentiu discretamente com a cabeça — como se confirmasse que algo estava errado.

Então Kaelith quebrou o silêncio:

— “E se procurássemos algo no Santuário das Chamas?”

Todos se viraram para ele.

Elira arregalou levemente os olhos.

— “Kaelith… você perdeu completamente a noção do risco?” — sua voz era incrédula, carregada de um misto de medo e reprovação. — “O Santuário das Chamas não é um templo comum. É restrito. Apenas com a permissão dos Ancestrais…” — olhou para Lúmina. — “…e você sabe que apenas ela pode entrar.”

Lúmina cruzou os braços, o olhar cortante. Por um instante, calou-se. Depois, com ironia sutil, declarou:

— “Dos mais loucos aqui… Kaelith foi o único que teve uma ideia brilhante.”

Arak rosnou baixinho, e Nyara enrolou-se mais perto de Elira, sentindo o peso do que viria.

Naquele instante, nenhuma palavra foi dita, mas os olhos disseram tudo:

Elira temia o que viria.

Askar sentia o peso do erro.

Kaelith via apenas oportunidade.

Lúmina… estava apreensiva, com o coração dividido entre a razão e o medo do que ainda não conseguia nomear.