O Plano Silencioso

Em um salão oculto da Dimensão Mística, os quatro guardiões — Elira, Askar, Lúmina e Kaelith — estavam reunidos com seus familiares. A atmosfera pulsava com tensão contida, como se cada respiração pudesse romper o fino véu de equilíbrio que ainda restava entre eles.

Grimórios antigos repousavam abertos sobre uma mesa ancestral, ao lado de frascos selados com cera mística e pedras gravadas com runas luminosas. As buscas por uma fórmula capaz de conter o desequilíbrio que os corroía por dentro haviam se mostrado inúteis. Todos sabiam: não conseguiriam mais evitar o inevitável. A entrada no Santuário da Chama se aproximava.

Kaelith, inquieto, quebrou o silêncio com a voz grave:

— Criamos uma distração — murmurou, os olhos flamejantes fixos na guardiã ao seu lado. — E você, Lúmina… entra.

O silêncio que se seguiu foi quebrado não por palavras humanas, mas por pensamentos compartilhados entre os familiares místicos.

— O amor… sempre ele. Bagunça tudo. Faz até os mais sábios cometerem loucuras. Quebram regras, desafiam destinos, tudo por um sentimento que nunca souberam controlar.

Do outro lado da sala, o unicórnio de Lúmina andava em círculos, agitado:

— Por que eu? Por que fui nascer ligado a uma sonhadora?

Mas era tarde demais. O plano já havia sido traçado.

Elaboraram uma estratégia arriscada:

• Kaelith libertaria um corrompido perigoso e o soltaria na Dimensão da Matéria.

• Lúmina correria até os Ancestrais para alertá-los sobre a ameaça, encenando uma descoberta alarmante.

• Elira e Askar manteriam os Ancestrais ocupados em uma reunião emergencial, discutindo estratégias de contenção.

• Enquanto isso, Kaelith se manteria nas sombras, garantindo cobertura para que Lúmina tivesse acesso ao Santuário da Chama — sem ser notada.

Enquanto Lúmina se preparava para o alarme, e Elira e Askar afinavam os próximos movimentos, Kaelith já descia às profundezas da Dimensão das Trevas, onde o primeiro passo do plano silencioso tomava forma nas sombras.

Nas entranhas da Dimensão das Trevas, o ar era denso como breu líquido, impregnado de uma energia ancestral que parecia murmurar segredos esquecidos. As paredes de pedra viva serpenteavam com correntes espectrais, como se o próprio tempo estivesse trancado ali dentro, resistindo à passagem.

Foi nesse cenário sombrio que Kaelith caminhou, envolto por sua capa escura, os olhos em brasas e a fúria queimando sob sua pele. Ao seu lado, Zhaerion o seguia em silêncio, observando com aquele olhar debochado e selvagem que sempre carregava. Kaelith não dizia nada, mas seu desequilíbrio era visível. Ele evitava mencionar Elira, porém os sentinelas notavam o fogo mal contido em cada gesto seu.

No coração da prisão mística, onde os corrompidos mais perigosos estavam selados, ele finalmente parou. O silêncio parecia se curvar diante da decisão que estava prestes a ser tomada.

— Liberte Vornak — ordenou ele, sem rodeios.

À sua frente, emergindo das sombras, Zhorak — seu sentinela de confiança — ergueu a cabeça. Era uma criatura imponente, com corpo moldado em sombra sólida, olhos incandescentes como relâmpagos silenciosos, e chifres de obsidiana. Seu torso era coberto por uma armadura forjada nas chamas do Subterrâneo, e uma capa de couro de dragão ondulava atrás de si como fumaça viva. Garras negras, afiadas como lâminas dimensionais, descansavam ao lado do corpo, prontas para rasgar o véu entre os mundos.

Zhorak fitou Kaelith em silêncio. A ordem havia sido clara, mas a vibração instável do guardião não passou despercebida. Como sentinela, ele era leal até o fim — mas não cego. Percebia quando as decisões nasciam da estratégia… e quando brotavam do tumulto do coração.

— Faça parecer que ele escapou — continuou Kaelith, a voz como lava resfriada. — Que os selos foram rompidos. Mas nada que alerte os Ancestrais.

Zhorak assentiu uma única vez e desapareceu nas trevas com um estalo abafado, como se tivesse sido engolido pela própria sombra.

Zhaerion soltou uma baforada de fumaça escura atrás de seu mestre, arqueando um sorriso afiado:

— Já vi reis queimarem impérios por muito menos. Mas continue… Há algo fascinante em assistir um deus tropeçar nos próprios sentimentos.

Kaelith não respondeu. Os punhos cerrados envoltos em brasas tremiam levemente. Não era fraqueza — era proteção, dizia a si mesmo. Mas no fundo, nem ele acreditava nisso.

Enquanto as correntes encantadas da prisão se contorciam com uma energia antiga, no mais profundo abismo da Dimensão das Trevas… algo despertava.

Vornak.

O primeiro corrompido. O marco zero do caos.

Suas garras arranharam lentamente a rocha viva ao redor, enquanto seus olhos — duas brasas apagadas — voltavam a brilhar. Sua pelagem negra como a noite se eriçou ao sentir a ruptura nos selos. As runas queimadas em seu peito e costas pulsaram com uma luz avermelhada, como cicatrizes que voltavam a sangrar.

Era uma criatura colossal, meio homem, meio lobo. Tinha mais de dois metros e meio de altura e exalava uma presença que fazia até as pedras tremerem. Sua aura espalhava medo, instabilidade e o instinto primitivo de fuga.

Durante milênios, seu nome foi sussurrado como uma lenda proibida. Mas ele não era apenas uma história. Vornak era real — e estava prestes a ser solto mais uma vez.

Há eras, sua corrupção havia abalado as estruturas cósmicas. Foi por causa dele que os Ancestrais criaram as três grandes divisões do universo:

• A Dimensão das Trevas, como prisão eterna para os irrecuperáveis.

• A Dimensão Mística, refúgio dos seres puros e das forças que mantinham o equilíbrio.

• E a Dimensão da Matéria, onde os ciclos de vida humana e mágica se entrelaçavam.

E foi também por causa dele que nasceram os Guardiões, os Familiares Místicos e os Sentinelas, como barreiras vivas entre luz e trevas. Vornak foi o caos que forjou a ordem.

Mais tarde, quando os Ancestrais decidiram criar um guardião com a força bruta de um lobo, mas com domínio espiritual, usaram um fragmento purificado da essência de Vornak — filtrado por luz e moldado pela fé.

Dessa transmutação, nasceram Askar e o lobo ancestral, Arak.

Por isso, há uma ressonância ancestral entre eles.

Um é o reflexo corrompido do outro. E quando se encontrarem, será como o passado olhando o futuro nos olhos — e nenhum dos dois estará pronto.

No plano material, tudo se desenrolava com precisão cirúrgica.

O selo foi quebrado sem alarde. Vornak, envolto em sombras vivas, atravessou o véu e caiu sobre a Dimensão da Matéria como uma tempestade silenciosa.

Lúmina, com o coração acelerado, correu até os Ancestrais. Seu rosto traduzia urgência verdadeira, ainda que soubesse do teatro. As emoções ali eram reais — mesmo que o enredo fosse falso.

— Um corrompido escapou — anunciou, ofegante. — Um ser antigo… Eu senti sua presença violando o tecido da Matéria.

Os Ancestrais não hesitaram. Convocaram Elira e Askar de imediato para uma reunião de emergência no Salão da Harmonia. Precisavam conter a ameaça antes que ela se alastrasse.

Enquanto isso, Kaelith observava de longe, camuflado entre véus de sombra e fogo.

Fez um sinal discreto para Lúmina.

— Você tem pouco tempo. Vá — murmurou.

Zhaerion, atrás dele, soltou uma baforada lenta e disse com a voz baixa, carregada de pressentimento:

— O caos já foi solto. Agora resta saber… quem será engolido por ele primeiro.

O unicórnio de Lúmina se encolheu atrás de uma formação cristalina. Ele também sentia. Algo estava prestes a sair do controle.

E o que começou como um plano silencioso… logo se tornaria o estrondo que dividiria as eras.

Em cantos distintos do universo, os quatro guardiões carregavam o silêncio que deixaram para trás.

Kaelith permanecia nas sombras da Dimensão das Trevas, de onde havia libertado o corrompido. Seus passos agora eram calculados, seu olhar distante — como se pudesse convencer a si mesmo de que nada daquilo fora real. Mas a verdade queimava sob a pele. Ele sabia o que havia feito. E sabia que, se falhassem, não haveria sombra onde pudesse se esconder.

Lúmina deslizava entre véus místicos, prestes a atravessar os limites do Santuário da Chama. Cada passo era uma afronta ao equilíbrio, cada respiração, uma oração muda para não ser descoberta. Mesmo ela, tão sensível à luz, agora sentia o peso da escuridão pairando sobre seus ombros.

Elira e Askar, por sua vez, sustentavam a distração com os Ancestrais. As palavras saíam com fluidez, mas por dentro, o medo martelava. Eles fingiam calma, fingiam estratégia — mas o que escondiam era mais profundo que qualquer plano: era desespero.

Nenhum deles queria aquilo. Nenhum deles sonhou em chegar tão longe. Mas o tempo havia cobrado pressa… e a esperança, sacrifícios.

A verdade é que não havia mais alternativas.

Eles haviam tentado. Procuraram respostas nas runas, nos elementos, nos sonhos, nas visões. Mas o caos crescia. O desequilíbrio pulsava. E a maldição já sussurrava nos cantos do tempo.

Agora, cada um deles caminhava sozinho…

Mas todos sabiam: estavam unidos pela mesma culpa.

E pelo mesmo desejo de impedir o fim.

Os guardiões sabiam o risco. Sabiam o preço.

Mas haviam tentado de tudo — e falharam.

Aquilo não era um ato de rebeldia…

Era a última saída.

A única que restava.