As portas do Santuário da Chama se fecharam atrás de Lúmina com um estalo seco e definitivo.
O calor a envolveu de imediato.
O ar parecia vibrar em tons rubros, e os vitrais pulsavam com luz viva, como se cada chama ali tivesse consciência própria.
A energia do lugar era ardente, ancestral, densa — carregada de um poder que não distinguia o bem do mal, apenas a essência.
Ela já estivera ali antes.
Era, afinal, portadora da chave mística daquele lugar,
e costumava visitar o santuário sempre que os Ancestrais ordenavam.
A cada visita, cumpria com precisão os rituais de preservação e alinhamento, zelando para que tudo permanecesse em perfeita harmonia.
Mas naquela vez… algo era diferente.
O santuário sentiu.
Sua presença, antes equilibrada, agora vibrava de forma dissonante.
Algo mais profundo, mais escuro, fluía por ela.
E o santuário não a rejeitou.
Em silêncio, a acolheu.
Lúmina avançou, cautelosa, entre estantes de cristal e prateleiras de vidro, onde frascos cintilantes flutuavam em campos de energia.
O silêncio era espesso, cortado apenas pelo estalo suave das chamas vivas que pareciam observá-la.
Cada passo ecoava como uma pergunta.
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Do lado de fora, à distância, Kaelith mantinha-se atento. Seu olhar atravessava véus e sombras.
Ele sentia a tensão no ar — mas também confiava.
Empoleirado sobre uma formação rochosa próxima, Zhaerion ergueu a cabeça ao perceber a aproximação silenciosa do unicórnio de Lúmina.
O animal celestial hesitava, os cascos relutantes como se pisassem gelo invisível.
Seus olhos estavam marejados, e ele mal conseguia se aproximar do dragão colossal.
Zhaerion virou o pescoço lentamente, as escamas negras reluzindo em tons escarlates.
Seus olhos semicerrados brilharam com sarcasmo.
— Tão puro… tão poderoso… — rosnou, com um sorriso torto. — E tão medroso.
Soltou um riso seco, gutural, que reverberou como um trovão abafado.
— Se tremesse mais um pouco, virava geleia mística.
O unicórnio bufou, ofendido, mas não respondeu. Apenas recuou um passo, tentando manter a compostura.
Por dentro, ele já sentia: algo estava prestes a mudar.
⸻
Lá dentro, Lúmina caminhava com o coração acelerado.
Não era medo. Era um misto de urgência e algo que ela não ousava nomear.
Seus olhos vasculhavam freneticamente as prateleiras do santuário oculto — repletas de frascos lacrados, essências seladas com runas douradas e documentos ancestrais cobertos por véus de poeira mágica.
Procurava a fórmula de bloqueio… mas algo a encontrou primeiro.
Em um canto silencioso do santuário,
um espelho opaco estava embutido entre duas colunas de pergaminhos antigos.
Sua superfície era opaca, estática, indiferente ao que havia ao redor.
Mas naquele momento… ela sentiu.
Algo por trás dele vibrava — uma presença oculta, ansiosa.
Lúmina se aproximou, guiada por uma intuição que não vinha da razão.
Ao estender a mão, a superfície do espelho pulsou, como se reconhecesse sua essência.
A opacidade se dissolveu lentamente em névoa dourada,
revelando uma prateleira oculta, escondida entre as paredes.
Ali, repousavam dois códices idênticos, espessos, enfileirados com perfeição.
Mas havia um terceiro, mais fino, delicadamente prensado entre eles.
Ele não deveria estar ali.
A lateral desse volume emitiu um brilho sutil, rubro —
como um segredo impaciente por ser descoberto.
Quando Lúmina tentou alcançá-lo, uma barreira mágica ondulou no ar — uma ilusão, disfarçada com maestria.
Um encantamento antigo, feito para esconder, repelir, apagar.
Mas aquele feitiço reconheceu a mudança nela.
Sua essência já não era mais a mesma.
E então… cedeu.
A ilusão se desfez em partículas de luz,
e o códice revelou-se por inteiro — envolto por uma fita dourada, selado com cera negra.
Uma runa ancestral estava gravada na capa: o símbolo do proibido absoluto.
Lúmina sentiu o ar rarefazer.
O selo… ela o conhecia.
Seus olhos se arregalaram ao compreender:
estava diante do Códice dos Feitiços Proibidos.
A luz rubra pulsava lentamente por dentro dele, viva, quente, consciente —
como um coração encantado, batendo em silêncio.
Lúmina parou.
A vibração daquela energia coincidia com a inquietação em seu peito.
Era como se o códice a chamasse.
Como se dissesse:
“Aqui estou. Por que demorou tanto?”
O códice se abriu sozinho, revelando uma página viva, encantada.
As palavras surgiram como se estivessem sendo escritas no exato momento em que ela as lia —
trêmulas, brilhantes, carregadas de um poder que jamais deveria ser desperto.
No topo da página, selado por runas sussurrantes, um nome queimava em dourado profundo:
Encantamento do Amor Absoluto
Encantamento urdido para atrair o olhar adormecido, incendiar o sentimento ausente e entrelaçar corações até que o amor floresça onde nunca houve semente.
E então, a página respirou.
No centro dela, como se estivesse emergindo da própria magia,
a poção apareceu diante de seus olhos —
não apenas ilustrada, mas viva.
O frasco etéreo flutuava lentamente acima da folha, como se desafiando as leis da matéria.
Era feito de um vidro translúcido e delicado, fino como cristal de orvalho, envolto por fios dourados que se entrelaçavam como raízes encantadas.
Dentro dele, o líquido era vermelho rubi, cintilando com fragmentos de luz e sombra que dançavam em redemoinhos sutis —
como estrelas aprisionadas num universo líquido.
A poção girou sobre si mesma no ar, e então… projetou uma visão.
Lúmina prendeu a respiração.
Ela viu Askar.
Seus olhos semicerrados, seu rosto inclinado…
beijando alguém com a intensidade de quem não conhecia limites.
No início, era Elira. Mas num piscar de olhos, a imagem mudou.
Era ela.
Ela nos braços dele. Ela sendo desejada com aquela mesma urgência ardente.
Lúmina levou um susto. Recuou bruscamente, e o códice caiu no chão com um som surdo, reverberando no santuário em um eco quase sagrado.
Ofegante, ela olhou para o tomo aberto, com o coração disparado.
O ar parecia mais denso, como se o tempo tivesse parado.
Seu peito ardia com medo e desejo.
As mãos tremiam. Os olhos brilhavam.
Ela não sabia se chorava… ou se sorria.
O códice ainda pulsava diante dela — e parte dela… queria tocá-lo de novo.
Ela hesitou… mas então se agachou, pegou o códice com mãos trêmulas, e ele se abriu novamente na mesma página, como se jamais tivesse sido interrompido.
A poção ainda flutuava diante dela, viva, sedutora, pulsando em seu rubi líquido o reflexo daquilo que ela mais queria.
Mas a imagem mudou.
Dessa vez, não era apenas um beijo.
Era Askar.
No quarto onde ela o vira naquele dia — o mesmo em que passara pelos corredores para visitar Arak, ferido após o ritual da Fusão Primordial.
Ela reconheceu tudo. A atmosfera. O espaço. O vazio nas paredes.
A dor que ainda queimava quando a lembrança emergia.
Ele estava ali, como antes, inclinado sobre o corpo de uma mulher, os olhos semicerrados, o toque firme e detalhado, como se cada centímetro da pele sob seus dedos fosse uma promessa de prazer.
Os lábios dele percorriam a pele com lentidão, como quem escreve segredos com a boca.
As mãos exploravam com precisão, envolvendo ombros, contornando a cintura, coxas, pressionando a curva dos quadris.
Era um toque que invadia, dominava, queimava.
E, por um instante, Lúmina sentiu tudo aquilo como se fosse com ela.
Porque… era.
A mulher na cama.
A mulher sob ele.
Era ela.
Ela levou a mão à boca, tentando conter o impulso de recuar.
Mas o códice não parou.
Mostrou de novo.
A cena real.
Askar com Elira.
A imagem que ela nunca esqueceu, que ainda sangrava em sua memória.
Mas agora, no lugar de Elira…
estava ela.
Como se o códice soubesse.
Como se tivesse escavado em sua dor e moldado o desejo mais cruel.
Ela se viu ali.
Escolhida.
Desejada.
Vivendo o que tanto desejava.
Ela não disse nada. Não precisava.
Mas em seu olhar nasceu a semente do desejo.
Um pensamento se formou, lento, perigoso, doce como veneno:
⸻
“Talvez… só por um instante…
Se for apenas uma vez… só uma…
Eu quero saber como é…
Ser amada.
Ser tocada.
Desejada.
Beijada…
Por ele.”
Era o feitiço original.
A fonte da poção.
O segredo proibido.
Ela poderia criá-la se quisesse.
Tinha o poder.
Tinha o motivo.
Olhou novamente para a poção que flutuava em sua frente.
Sentiu o calor da culpa se chocar contra o frio da esperança.
Suas mãos suavam. Seus olhos brilharam.
Naquele instante, uma rachadura imperceptível se abriu dentro dela.
Não se tratava mais de proteger.
Era sobre sentir.
Era sobre ser escolhida.
A chama da tocha próxima oscilou, como se compreendesse o que acabara de acontecer.
Ou talvez… como se lamentasse.
⸻
Lúmina saiu do santuário em silêncio.
Kaelith a observava ao longe.
Ela fez um discreto aceno.
Ele entendeu o sinal: conseguiu.
Zhaerion bufou, sem tirar os olhos dela.
— Finalmente.
⸻
O unicórnio de Lúmina se aproximou devagar.
Os cascos não tremiam mais — mas a aura dele, antes dourada e firme, agora oscilava.
Ele olhou para sua guardiã com tristeza.
— O que você está fazendo? Essa não é você.
Lúmina não respondeu de imediato.
Seus olhos estavam fixos no horizonte, como se procurassem um caminho que já não conseguia mais ver.
— Eu… — ela murmurou, como quem falava mais para si mesma. — Talvez isso sempre tenha sido parte de mim. E eu só tentei esconder.
— Lúmina…
Ela fechou os olhos por um instante. Havia algo em sua voz — uma doçura cansada, uma firmeza frágil.
— Eu só quero sentir…
Só isso.
E se esse for o único jeito…
então que seja.
O unicórnio abaixou a cabeça.
A magia dele sentia.
O vínculo sabia.
Ela havia mudado.