O crepúsculo se curvava sob o véu de névoas da Dimensão Mística quando os quatro guardiões se reuniram.
O local escolhido era antigo: um templo esquecido pelo tempo, erguido entre pedras flutuantes e raízes suspensas. Uma brisa imóvel pairava no ar, como se o mundo prendesse o fôlego diante do que estava por vir.
Lúmina chegou por último.
Seus passos eram suaves, mas sua presença parecia mais densa. O brilho suave que sempre a envolvia havia escurecido, como uma chama ofuscada por sombra. Ao seu lado, o unicórnio andava em silêncio, sem coragem de levantar os olhos.
Kaelith foi o primeiro a romper o silêncio:
— Conseguiu? — sua voz soou baixa, mas cortante. — Onde está o manuscrito?
Lúmina não hesitou. Caminhou até o centro do círculo, os olhos fixos no horizonte.
— Era muito arriscado tirar de lá — respondeu. — O santuário estava carregado de selos ocultos. Mas… consegui memorizá-lo. Cada verso. Cada símbolo.
Askar a observava com a expressão contida, mas havia algo de duro em seu olhar.
— Memorizado? — perguntou. — Tem certeza de que não foi contaminado por interferência mágica?
— Tenho. — Ela respondeu firme. — O feitiço me chamou. Eu o senti. Era como se estivesse à minha espera.
Elira, calada até então, franziu levemente a testa. Seu instinto vibrava em alerta. Mas não disse nada.
— Do que se trata exatamente? — perguntou ela, a voz suave como vento cortante.
Lúmina fechou os olhos por um momento. Quando os abriu, algo havia mudado em sua expressão.
— Não é um feitiço qualquer. É antigo. Profano. Selado por razões que hoje talvez nem os Ancestrais compreendam por completo. Foi banido da memória do tempo porque sua essência… desequilibra o que foi dividido.
Um silêncio denso caiu sobre o templo.
— E onde ele pode ser invocado? — indagou Askar.
— Em solo sombrio — respondeu Lúmina. — Em um lugar que aceite o caos como parte de si. Só há um local assim… A Dimensão das Trevas.
Kaelith assentiu, como se já soubesse. Seus olhos vermelhos brilharam com algo que nem ele sabia nomear.
— E qual será a formação? — perguntou Elira, direta. — Vamos todos?
— Não — respondeu Lúmina, sem hesitar. — Elira e Askar devem permanecer na entrada. Precisaremos de cobertura… E, acima de tudo, de alguém para impedir que os Ancestrais interfiram caso percebam.
— E nós dois? — murmurou Kaelith, a sombra de um sorriso atravessando-lhe o rosto.
— Nós conjuraremos o feitiço — disse ela, encarando-o pela primeira vez. — Juntos.
Askar deu um passo à frente, hesitante:
— Você tem certeza disso, Lúmina?
Ela não respondeu de imediato. Apenas ergueu o queixo, os olhos perdidos entre o que foi e o que poderia ter sido.
— Talvez este não seja o caminho certo… mas é o único que temos.
— Já ultrapassamos o ponto onde era possível voltar.
Fez uma pausa, olhando para Kaelith, e completou:
— Mesmo que esse seja o caminho mais arriscado, ainda é a nossa chance… de consertar o que foi quebrado. Nem que para isso… precisemos atravessar a escuridão de mãos dadas.
Kaelith virou-se em silêncio, sua capa ondulando como fumaça densa. O unicórnio de Lúmina recuou ainda mais, os olhos marejados de tristeza.
Elira observava tudo em silêncio.
Algo havia mudado… E ela sentia que, a partir daquele momento, nada mais seria como antes.
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Enquanto os guardiões discutiam o próximo passo — onde, quando e como invocariam o feitiço selado — os familiares permaneciam próximos, silenciosos por fora, mas em conflito por dentro. Havia algo diferente no ar… uma tensão pesada, como se a própria essência da missão dos guardiões estivesse sendo corrompida.
Era como se o mundo ruísse devagar. Eles não tinham poder para detê-los. Eram parte deles. Laços entrelaçados por essência. Mas podiam falar. E então, falaram — com o coração apertado por algo que nem a magia ousava nomear.
Eyriel, o unicórnio de Lúmina, manteve-se imóvel ao seu lado, mas seus olhos — olhos que um dia refletiram a luz da alvorada — estavam opacos.
— Lúmina…
Sua voz soou em sua mente como uma canção que se desfaz ao vento.
— Esse desejo que pulsa em você… ele tem cor estranha. Tem o cheiro do que um dia foi puro, mas agora se curva ao que arde sem nome.
Uma pausa breve, quase um suspiro contido.
— Não deixe que ele te conduza por atalhos onde nem a luz ousa entrar. Nem tudo o que chamamos de amor nasce da luz. E nem toda paixão leva à plenitude… algumas apenas arrastam para o exílio de si mesma.
Lúmina respirou fundo. Apenas isso. Mas Eyriel sentiu. Uma muralha havia sido levantada entre eles.
Nyara, enrolada ao redor do punho de Elira, subiu vagarosamente até o ombro da guardiã, onde pousou a cabeça com delicadeza. Sua voz deslizou pela mente dela como o vento entre folhas antigas:
— Você dançou com as sombras… e esqueceu que há véus que não devem ser rasgados.
— Invadir o Santuário… ocultar a verdade…
— Feitiços selados são mais do que magia. São lembranças de mundos que sangraram por causa deles.
Silêncio. E então:
— Me escute, Elira. Volte a si. Ainda há tempo de recuar antes que a fenda te engula também.
Elira fechou os olhos, o peito subindo e descendo devagar. Não a respondeu. Mas a dor em sua respiração dizia tudo.
Arak, o lobo de Askar, não se moveu. Mas sua presença parecia crescer ao lado do guardião, como uma árvore antiga que observa a juventude tropeçar.
— Quando foi que deixamos de ouvir o farfalhar das advertências no vento?
— Você sempre pesou os passos com sabedoria. E agora caminha onde as pegadas desaparecem na penumbra.
— Olhe ao redor, Askar. Nem o tempo segura a respiração por esse feitiço…
— Mas se ainda assim for, que ao menos vá de olhos abertos. Pois coragem cega é só outro nome para desatino.
Askar não respondeu. Mas um tremor quase imperceptível percorreu seu braço. Ele sabia.
E então, por último, Zhaerion, o dragão de Kaelith, elevou sua cabeça poderosa, os olhos rubros fixos no guardião da sombra. Mas não havia sarcasmo ali. Apenas uma gravidade melancólica.
— Você caminha rumo ao abismo com a mesma confiança de um rato hipnotizado pelo perfume do queijo.
— Mesmo sabendo do aço escondido na ratoeira… você avança.
Eu não posso impedi-lo. Mas posso te lembrar.
— Você é um guardião. Não foi moldado pelas sombras que agora te assediam, nem pelas labaredas que nascem de um desejo que escurece o próprio nome.
— Não deixe que a loucura de querer o impossível obscureça o que você era… o que ainda pode ser.
— Amar não é possuir, Kaelith. E nem toda obsessão vem do coração.
Kaelith não respondeu. Mas por dentro… algo tremeu.
Os quatro guardiões permaneceram em silêncio. Cada um afetado. Cada um tocado. Mas todos… decididos.
Enquanto os guardiões permaneciam mergulhados no peso de suas escolhas, e seus familiares silenciavam em resignação, algo se movia além das camadas visíveis da existência.
No alto das esferas celestes, onde o tempo não corre, mas pulsa, os Ancestrais se reuniram.
O véu entre as dimensões tremia.
A rachadura, antes uma linha tênue e quase imperceptível, agora reverberava em todas as direções como uma melodia desafinada.
O que era equilíbrio, cambaleava.
O que era essência, se diluía.
Kaor, o Ancestral do Fogo, foi o primeiro a falar — sua voz ardia como brasa contida:
— O que antes vibrava em harmonia… agora canta em descompasso. A centelha queima além do que deve, e seu clarão ameaça cegar até os olhos da luz.
Naelya, a Ancestral das Águas, falou em seguida — suave, porém cortante como uma corrente oculta:
— A fonte foi envenenada. Não por malícia… mas por ausência de pureza. E até o rio mais sereno pode se tornar um dilúvio quando desviado de seu leito.
Orunn, o Ancestral da Terra, ergueu os olhos pesados como rochas antigas:
— O que era semente germinou… mas os frutos nasceram antes do tempo. E quando a colheita é apressada, o solo exige seu preço.
Zephiron, o Ancestral do Ar, soprou seu lamento num sussurro que atravessou o silêncio:
— Os ventos já não seguem seus ciclos. O ar carrega murmúrios de escolhas que não deveriam ter sido feitas. E cada sopro se converte em vendaval.
Por fim, Lumys, o Ancestral do Espírito, envolto em névoas de luz líquida, apenas sussurrou:
— A fenda se abre. E do outro lado… algo desperta. Algo que já foi silenciado uma vez… mas nunca esquecido.
Como vidro encantado prestes a ceder, a fissura no véu se alongava
O que era puro… foi tocado.
E aquele toque — sutil como a brisa antes da tempestade — espalhou-se entre as camadas invisíveis da existência.
Aqueles que foram criados com um propósito… agora cambaleiam nas margens de si mesmos. Seus corações se entrelaçam em escolhas não ditas, esquecendo o motivo que outrora os guiava e unia.
O propósito se turvou.
E ao contaminarem o que era sagrado com desejos não confessos, abriram um caminho onde tudo pode se alinhar… ou se perder para sempre.
Pois há escolhas que curam.
E há escolhas que não permitem retorno.
A rachadura pulsa, viva, faminta — e com ela, uma verdade sussurrada pelas próprias raízes do que foi selado.
Lumys, o Ancestral do Éter, permitiu que sua voz fluísse como brumas cósmicas, ressoando além do tempo:
“Aquilo que racha em silêncio… pode nunca mais voltar a ser inteiro.”