Os dias passaram em silêncio tenso.
A conjuração do feitiço havia sido marcada para a próxima conjunção lunar, quando os véus entre as dimensões estariam mais frágeis.
Mas Lúmina não conseguia descansar.
A cada nascer do sol, o peso da verdade escondida se tornava mais insuportável.
Não era culpa pelo que fizera.
Não era arrependimento por ter violado os selos do Santuário da Chama.
Era o receio de como Kaelith reagiria ao saber que ela não trouxera o feitiço de bloqueio, como havia prometido.
Porque, diante daquela força ancestral, diante da escolha que selara seu destino…
Ela havia fraquejado.
E deixado-se levar por algo ainda mais perigoso: o feitiço do amor absoluto.
O céu da Dimensão das Trevas não tinha cor — era um manto imóvel onde até as estrelas se escondiam de medo.
As sombras não se moviam… observavam.
Ali, o tempo não fluía. Pulsava. Como uma veia subterrânea que carregava segredos antigos demais para serem revelados à luz.
Lúmina atravessou o limiar entre as dimensões com os olhos baixos e o coração em peso.
Ao seu lado, Eyriel caminhava em silêncio — as patas leves, os olhos apagados como espelhos cobertos de cinza.
O unicórnio não dizia nada, mas sua respiração irregular denunciava tudo que não ousava pronunciar.
No caminho até o altar escolhido, ela passou por Elira e Askar, que já estavam posicionados no limite do círculo arcano — o exato ponto em que as forças da dimensão oscilavam como véus prestes a se rasgar.
Não trocaram uma palavra sequer.
Apenas se entreolharam em silêncio.
Olhares longos, carregados de algo que nenhum feitiço poderia traduzir.
Arak, o lobo de olhos firmes, observava Lúmina com atenção contida, como quem escuta uma tempestade antes que ela toque o solo.
Nyara, enrolada no pulso de Elira, ergueu a cabeça com um sussurro sibilante no ar, mas não disse nada. Apenas observou.
Lúmina não desviou o olhar.
E também não hesitou.
A antiga hesitação havia morrido ali mesmo — diante dos olhos silenciosos de Elira e Askar.
Eles estavam lado a lado, imóveis, como sentinelas da consciência que ela recusava.
Mas foi a imagem dos dois — conectados, cúmplices mesmo no silêncio — que reacendeu algo escuro e denso dentro dela.
Não era arrependimento que a consumia.
Era a chama antiga do desejo não atendido.
A lembrança do que poderia ter sido — e do que ainda podia torcer para ser.
Ela estava decidida.
Se o mundo desabasse, que desabasse.
Se os véus se rompessem, que se rasgassem.
Ela conjuraria o feitiço.
Não para impedir.
Não para proteger.
Mas para amarrar o destino à sua vontade.
Ela não buscava redenção.
Nem esperava perdão.
O que a movia agora era uma obsessão cega — um amor impossível que tomara forma, se infiltrando nas rachaduras da alma.
A luz que um dia guiou seus passos havia se apagado pouco a pouco…
Substituída por uma chama silenciosa, alimentada pelo que não foi dito, pelo que nunca foi seu.
No reflexo do que lhe fora negado…
Ela mergulhou.
Mesmo sabendo que ali não havia salvação.
Seguiu em frente.
Cada passo era como mergulhar mais fundo em um oceano onde o ar custava a vir.
O lugar escolhido para o ritual era um antigo altar, cravado entre colunas retorcidas e árvores sem folhas — uma clareira cinzenta onde nada nascia e tudo morria devagar.
Kaelith já estava lá.
De costas para ela, observava o horizonte morto, onde relâmpagos silenciosos se contorciam como serpentes no céu sem lua.
Sua presença era tão imponente quanto o próprio lugar.
Os cabelos escuros esvoaçavam com a brisa mórbida, e o manto negro flutuava em torno dele como fumaça viva.
Lúmina parou.
Ela o observou em silêncio, e nesse instante, tudo dentro dela pareceu gritar.
Não era apenas o feitiço. Não era só o medo.
Era o peso da mentira.
O tempo que passou desde o roubo no Santuário da Chama vinha se acumulando como gelo em suas veias.
Ela não encontrara o feitiço de bloqueio.
Não fora por descuido.
Ela o ignorou.
Cegada por algo que já não sabia mais nomear, Lúmina havia se deixado consumir pela promessa do feitiço do amor absoluto — uma magia proibida, antiga, que prometia não apenas a união, mas a fusão de duas almas em um só destino.
Ela havia escolhido.
E agora… não havia mais como fugir da verdade.
Kaelith se virou, como se sentisse o tremor que ela tentava esconder.
Seu olhar foi direto ao dela.
E por um breve segundo, tudo ao redor pareceu silenciar.
— Vai voltar atrás agora? — ele perguntou, sem levantar a voz. Era mais uma constatação do que uma acusação.
— O medo falou mais alto?
Lúmina o encarou.
Os olhos dele ardiam como brasas contidas, esperando por algo que ela não sabia se conseguiria entregar.
Por um instante, pensou em mentir de novo.
Mas seu silêncio a traía.
E seu olhar… vacilava.
Ela respirou fundo.
Depois, finalmente, falou:
— Não é isso, Kaelith.
— Eu… preciso te contar uma coisa.
— Fale — respondeu ele, ainda sem encará-la.
— Eu menti.
Kaelith se virou com brutalidade.
— Você o quê?
— Calma, Kaelith — tentou ela, erguendo as mãos. — Eu… eu não achei o feitiço de bloqueio. Não estava lá.
O silêncio durou um segundo. Talvez dois.
E então ele deu um passo à frente, o olhar em brasas.
— Você mentiu… e colocou todos em risco.
— Mas escute! Eu achei algo melhor — insistiu, os olhos brilhando com uma excitação nervosa. — Eu encontrei o Encantamento do Amor Absoluto.
— O quê?
— Com ele… nós podemos lançar o feitiço sobre Elira e Askar.
Eu em Askar… e você em Elira.
Eles se esqueceriam um do outro.
Seriam nossos.
Enfim nossos.
Kaelith desviou o olhar, como se algo dentro dele se recusasse a ouvir.
— Eu estou cansado disso — rosnou. — Eu quero me libertar. Chega. Chega de Elira. Chega desse vazio.
— Você ainda a ama! — sussurrou Lúmina, desesperada.
— Eu quero deixar de amar. É diferente.
Ele se virou de costas, pronto para partir, mas ela não cedeu.
— Kaelith… precisamos fazer algo antes que seja tarde. Antes que eles cometam um ato mais infame ainda.
— Do que está falando?
— Eles já começaram. Elira e Askar. Já estão juntos.
A pupila do dragão dentro dele se contraiu.
— Mentira.
— Eu vi com meus próprios olhos — disse ela, amarga. — Aquele dia, quando visitamos o lobo. Elira foi até o quarto de Askar.
Eles se beijaram.
Tocaram-se.
Como se só existissem os dois.
Kaelith recuou um passo, o corpo inteiro tenso.
Zhaerion, ao fundo, soltou um ruído seco, inquieto.
— Cala essa boca. — A voz de Kaelith tremeu, mas não de medo.
— É melhor você ver com seus próprios olhos.
Ela se aproximou lentamente.
Kaelith não reagiu.
Seus olhos ardiam.
Com as duas mãos, Lúmina segurou o rosto dele com delicadeza.
Os olhos dela brilharam em um tom rubro-dourado.
O véu se abriu entre os pensamentos.
E Kaelith viu.
Elira nas mãos de Askar.
Os beijos urgentes.
O desejo crescendo.
A conexão que antes fora dele, agora entregue a outro.
As paredes do quarto.
Os suspiros.
A entrega.
O que restava de controle se dissolveu — e o monstro dentro dele despertou.
— CHEGA! — rugiu Kaelith, afastando Lúmina com um impulso explosivo.
Uma onda de energia percorreu o chão, rachando as pedras.
Zhaerion rugiu do alto da montanha, suas escamas se acendendo em vermelho vivo.
Kaelith caiu de joelhos, os olhos brilhando em dor e fúria.
— Eles… já se tocaram?
E naquele instante, algo dentro de Kaelith… quebrou.
Lúmina se aproximou
— Não existe feitiço para bloquear o amor, Kaelith.
É por isso que os Ancestrais temem tanto esse sentimento e vivem nos ordenando que o evitem.
O amor… não pode ser controlado.
Mas ele pode ser desviado. Redirecionado.
Ela se aproximou mais, agora com brilho febril no olhar.
— Veja… Eu encontrei algo que pode nos dar o que queremos.
Lúmina ergueu a mão lentamente e, com a ponta dos dedos, desenhou no ar uma sequência de runas antigas — traços fluidos que cintilavam entre o visível e o invisível.
As runas se alinharam, girando em silêncio, até que um portal etéreo se abriu à sua frente: uma fenda brilhante onde luz e sombra se entrelaçavam.
Ela enfiou a mão na abertura encantada e puxou de dentro um códice envolto em energia escura, viva, pulsante.
Era o Códice dos Feitiços Proibidos — de couro antigo, com marcas que pareciam respirar sob a luz da Dimensão das Trevas.
Kaelith ficou imóvel.
— Você…
— Você roubou o Códice dos Feitiços Proibidos?
— Eu não o tirei de lá.
Isso é uma duplicata.
Eu memorizei cada selo, cada runa, cada verso amaldiçoado…
e fiz uma cópia perfeita.
— Aqui dentro… está o Feitiço do Amor Absoluto…
e todos os outros feitiços selados e esquecidos.
Feitiços de invisibilidade, duplicidade, barreiras ancestrais…
Magias que podemos usar quando fugirmos para a Dimensão da Matéria,
onde os Ancestrais não poderão nos achar.
Nem nos controlar.
Os feitiços proibidos… não são tão perigosos quanto eles dizem.
A verdade é que são poderosos demais.
Eles temem o que esse poder pode causar se usado de forma errada.
Mas nós…
Sabemos o que estamos fazendo.
— Agora eles são nossos, Kaelith.
Estamos a um passo da nossa liberdade.
Ela abriu o códice.
As páginas se moveram sozinhas.
O feitiço brilhou diante dele.
Kaelith tocou as palavras.
E viu.
Elira… com ele.
Elira… para ele.
Elira… submissa.
A febre subiu.
Ele apertou o códice.
Olhou para Lúmina.
E sorriu.
— Vamos acabar logo com isso.
Ela assentiu.
E juntos, começaram a conjuração.
O Feitiço do Amor Absoluto estava sendo invocado.