A câmara mística pulsava como um coração em agonia.
As paredes vibravam em tons escarlates, distorcidas pela energia do feitiço que crescia, selvagem, no centro da câmara. O ar estava denso, saturado de magia desequilibrada — como se o próprio espaço estivesse à beira do colapso.
Elira correu entre os círculos de runas incandescentes, sentindo a pele arder com cada centelha que escapava do caldeirão. Askar a seguia de perto, os olhos fixos em Kaelith e Lúmina, que permaneciam imóveis, mergulhados em uma conjuração proibida.
— Temos que pará-los — sussurrou Elira, a voz trêmula, mais para si do que para o outro.
Mas a barreira mágica ao redor do ritual impedia qualquer aproximação.
Kaelith estava envolto por uma espiral de energia rubra. Lúmina mantinha os olhos fechados, entoando as palavras esquecidas com uma precisão cruel, enquanto o caldeirão rugia como se fosse vivo.
Elira sentiu o desespero subir pela garganta.
E então, o fez:
— Kaelith! Por favor… olhe para mim. Me escute!
A voz de Elira cortou o véu denso do encantamento como uma flecha de luz atravessando a névoa.
As palavras vibraram no salão como um chamado esquecido.
Kaelith sentiu o feitiço ruir com o grito de Elira. A energia que o envolvia se desfez como vidro trincado, espalhando estilhaços invisíveis por todo o salão.
Ele piscou.
Kaelith piscou. As runas incandescentes ao seu redor estremeceram.
Seus olhos — antes fixos no caldeirão — buscaram Elira, como se puxados por um fio invisível de memória.
E então, ele a viu.
Os cabelos em chamas douradas. A pele marcada pela fúria e pelo desespero. Os olhos suplicando por algo que já não existia.
Mas foi quando ele enxergou Askar ao lado dela — o corpo firme, o peito arfando, os olhos protegendo — que tudo desabou.
O sangue de Kaelith ferveu.
E então, ele explodiu:
— Você mentiu pra mim — rosnou, a voz tomada por dor, raiva e traição.
A voz dele ecoou como o rugido de mil trovões.
— Você disse… você prometeu, Elira! Disse que ia encontrar uma forma de se libertar desse sentimento — de nos libertarmos! Disse que ia tentar resistir. Que ia lutar. Que ia me ajudar a lutar também!
Mas, ao invés disso…
Kaelith cerrou os punhos, trincando os dentes.
Ele se virou para Askar, os olhos flamejantes fixos como lâminas.
— Você se jogou nos braços dele!
Você se entregou.
Você escolheu se perder nele.
Askar deu um passo à frente, o rosto em choque.
— Kaelith… nós tentamos resistir, mas foi mais forte…
Kaelith se virou com violência para Askar, a voz subindo como um trovão:
— Cale a boca! — rugiu o guardião, o chão ao redor vibrando com sua fúria contida. — Você destruiu ela!
Você perseguiu Elira com esse seu amor fraco, essa devoção silenciosa… e ela caiu.
Você a corrompeu, Askar!
Elira tentou intervir, o rosto tomado de angústia:
— Kaelith, não é isso… você não entende.
— Entendo, sim! — vociferou ele, com a voz quebrando no final. — Você só precisava de alguém que insistisse mais. Que te desejasse mais.
E você escolheu… ele.
Ele apontou para Askar como se o culpasse por um destino que jamais seria seu.
— Por sua causa, ela caiu. Ela se entregou a esse sentimento que era pra ser evitado. Ela se perdeu!
Atrás dele, o dragão rugiu em resposta — um som seco, torto, como se estivesse rasgado por dentro.
Kaelith, no centro do círculo rompido, estava imóvel. Mas seus olhos… queimavam como brasas vivas.
E então ele deu um passo à frente. E a fúria explodiu.
— Por sua causa… ela se corrompeu!
— Kaelith… vamos consertar isso juntos… — Askar tentou intervir, calmo.
— Cale a boca! — rugiu Kaelith, os olhos rubros agora reluzindo com fúria líquida. — Você ficou rondando ela como um lobo faminto, esperando o momento de fraqueza!
O dragão de Kaelith, nas sombras do salão, emitiu um rosnado profundo e abafado — como se sentisse a alma do guardião em colapso.
— Você a perseguiu com esse seu olhar resignado… com esse seu silêncio cheio de esperança.
E ela… ela desistiu de lutar comigo.
Ela caiu em você.
Porque era mais fácil… porque era mais simples!
Elira deu um passo.
— Kaelith… por favor… você está ferido…
— Ferido porque acreditei em você. Porque achei que… tínhamos o mesmo propósito.
A respiração dele era cortante, não por fraqueza… mas por excesso de poder contido.
Os olhos, escurecidos pelo feitiço, ardiam como brasas vivas.
— Você sabe o que senti quando descobri… que ele te tocou. Que ele te beijou. Que você o escolheu.
As palavras saíam baixas, mas cortavam como lâminas.
Askar ergueu o rosto, firme:
— Nós erramos. Mas esse feitiço vai destruir tudo. Até você.
Kaelith apontou a mão em chamas para ele:
— Você roubou Elira de mim!
E antes que qualquer um pudesse impedir, uma rajada flamejante foi disparada.
Askar se esquivou por pouco, o fogo explodindo contra uma das colunas da câmara e espalhando faíscas ardentes pelos vitrais. O impacto sacudiu o chão. Elira levou as mãos ao rosto, assustada.
— Kaelith! Se controle! — gritou Lúmina, erguendo a mão e disparando uma esfera de luz em sua direção.
Kaelith desviou com um giro ágil, a aura de seu dragão já ondulando ao redor do corpo — olhos vermelhos, dentes cerrados.
Ele encarou Lúmina, a voz carregada de raiva e incredulidade:
— Como ousa me atacar?
Sou o único que ainda está do seu lado!
Ele lançou um segundo ataque, mirando diretamente em Lúmina, como se quisesse varrer o passado de vez.
Ergueu o braço com brutalidade, e uma rajada flamejante começou a se formar em sua mão. O calor ondulava no ar, distorcendo as formas ao redor, enquanto o feitiço crescia com fúria descontrolada.
Zhaerion, o dragão sombrio, ergueu as asas em sincronia, canalizando cada gota do ódio represado de seu guardião. A conexão entre os dois era feroz — visceral, devastadora.
Elira sentiu o instinto gritar dentro de si.
Ela não pensou.
Movida pela lembrança do que Lúmina representava — a amizade antiga, os laços que ainda resistiam em alguma dobra do tempo —, ela se lançou adiante.
— Lúmina! NÃO! — bradou, com os olhos em chamas.
Elira avançou, a aura dourada crescendo ao seu redor, faiscando como brasas ao vento. Suas mãos se ergueram, invocando a força ancestral que ainda resistia dentro dela.
Nyara deslizou logo atrás, envolta em chamas douradas e laranjas incandescentes. Posicionou-se atrás de sua guardiã, os olhos abrasadores canalizando e amplificando o poder de Elira, como se suas essências vibrassem em uníssono.
— Elira! — gritou Askar, os olhos arregalados ao perceber a intensidade da magia de Kaelith.
Ele se preparou para protegê-la.
Cerrou os punhos, a respiração pesada, o olhar fixo no centro do perigo. Sua aura cinzenta ondulou como névoa condensando-se em tempestade. Quando ergueu o braço, um trovão seco ribombou acima deles — a energia se concentrando entre seus dedos com poder crescente.
Arak, o lobo de olhos âmbar, correu para o lado do guardião. Sua pelagem estava eriçada, o corpo arqueado e vibrante. Ele posicionou-se ao lado de Askar, liberando uma onda pulsante de energia primal — fortalecendo o poder que nascia nas mãos do guardião.
Kaelith não suportava ver Askar ao lado de Elira. A visão daquele triângulo, por Elira não o escolher, o consumia por dentro. Ele mudou o foco, com um rugido surdo:
— Vou acabar com isso agora…
Kaelith havia enfim revelado o que sempre esteve em seu coração:
Não era o feitiço.
Não era a traição.
Era ciúme. Puro. Cru. Devastador.
E ele queria eliminar o obstáculo: Askar.
Lúmina, ofegante, girou com agilidade contida. Sua mão já brilhava com uma esfera de luz prateada instável. Mas ao ver o olhar de Kaelith agora mirando Askar, o instinto falou mais alto.
Ela entendeu.
Kaelith queria eliminar o obstáculo. Não o feitiço. Não a traição. Mas Askar.
Rancor. Surdo. Destrutivo
— ASKAR! — gritou Lúmina, rompendo todas as barreiras dentro de si.
Ela se lançou à frente.
Não por culpa.
Não por dever.
Mas por amor.
Ela o amava. Desde sempre. Mesmo sendo invisível. Mesmo sabendo que só ela sangrava naquele triângulo torto.
E ainda assim… ela precisava protegê-lo.
Porque ainda havia esperança.
Porque acreditava que, com o feitiço certo, poderia fazê-lo amá-la.
Porque preferia morrer o salvando do que vê-lo morrer por outra.
Ela correu como um raio instável. Abriu os braços. E a luz nasceu de dentro.
Eryel, o unicórnio, galopou atrás dela. Não era mais puro — sua pelagem oscilava entre luz e sombra. Mas sua força era brutal. Posicionou-se ao lado de Lúmina, com o chifre brilhando como uma estrela em colapso.
E então, os quatro guardiões — Kaelith, Elira, Askar e Lúmina — liberaram seus poderes.
A energia rugiu no ar.
Familiares em posição.
E o impacto aconteceu.
Luz e sombra explodiram em todas as direções.
O chão tremeu.
Os vitrais estilhaçaram.
E a câmara mergulhou em caos absoluto.
E o que era uno… se partiu.
Laços antes inquebráveis renderam-se ao peso das emoções não contidas.
O que era amor, floresceu onde não devia —
e desabrochou em obsessão.
O que era zelo, transbordou em ciúmes.
O que era silêncio, virou mágoa.
O que era desejo contido, se fez loucura.
Sentimentos que deveriam ser combatidos foram alimentados em segredo.
E o que não deveria ter florescido, ganhou raízes profundas, perigosas, inevitáveis.
Eles não resistiram.
Não lutaram.
Apenas… cederam.
Juntos, quebraram o ciclo.
Uniram-se no erro.
Desobedeceram a ordem primordial.
Violaram o que era inviolável.
E assim, mancharam o próprio destino.
Invadiram o santuário ancestral
Rasgaram véus que protegiam o equilíbrio.
Roubaram o que não lhes pertencia.
E sem perceber… abriram as portas do fim.
Aquela que deveria guiar… mentiu.
Manipulou.
Transformou-se em condutora do caos.
Aquele que outrora era luz —
puro, justo, inabalável —
foi seduzido por promessas doces e vazias.
Cedeu.
Se corrompeu.
E em sua dor, ansiava por destruir aquele que o lembrava do que jamais seria.
O guardião que amava…
descobriu que seu maior inimigo estava dentro de si.
O sentimento que jurara combater
tornou-se lâmina afiada
que ceifou toda a esperança.
O que era proteção, converteu-se em prisão.
O que era promessa, virou aço frio envolvendo corações.
O que era redenção, esvaía-se em fumaça púrpura no ar denso.
E agora, em meio aos escombros místicos,
a única certeza que restava
era a de que nada jamais voltaria a ser como antes.
O mundo respirava em desalinho.
Os véus entre as dimensões sangravam com cada pulsar.
A harmonia, antes tecida em fios de luz,
desfiava-se em fragmentos de desespero.
E, na quebra desse laço ancestral,
nascia uma fenda profunda —
onde o amor e a obsessão
se entrelaçavam em dança profana.
Não havia vencedor naquele instante.
A vitória seria um mito,
e a derrota, um legado para todas as eras.
Pois o primeiro conflito não apenas queimou o presente,
mas acendeu brasas que arderiam nas sombras do futuro.