Quando Os Céus Olham Para Outro

Os olhos dos deuses nunca estiveram sobre Lucien. Desde seu nascimento, ele foi ignorado pelos céus e amaldiçoado pelos homens. Mas naquela noite, em meio à areia fria de Kush, o firmamento finalmente se voltou... só que não com bênçãos, mas com vigilância.

Após o contato com o trono de ossos e a invocação involuntária de Mal’kareth, Lucien não era mais apenas um miserável. Ele era agora um farol invertido. Um ponto escuro no mundo, visível mesmo àqueles que habitavam reinos de luz.

E os céus — especialmente os de Heliópolis — odiavam aquilo que não compreendiam.

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No coração do deserto, Lucien se refugiou em uma antiga tumba semi-enterrada, onde cadáveres sem nome repousavam há séculos. A podridão não o incomodava. Na verdade, era o lugar mais confortável que já conhecera.

Ele estava mudando.

Sua pele, outrora pálida e suja, agora exalava um calor estranho, como se algo dentro dele queimasse constantemente. As marcas negras em seus pulsos se expandiam lentamente, como raízes sedentas.

Dormir era impossível. Os sussurros de Mal'kareth nunca cessavam. Eles vinham em línguas quebradas, em símbolos que se escreviam sozinhos nas paredes ao seu redor. Mas Lucien começava a entender. Não com o cérebro… mas com o instinto.

Ele não precisava compreender o abismo. Apenas aceitá-lo.

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Enquanto isso, em Heliópolis, os preparativos para a marcha de Aldric estavam quase completos. Os sacerdotes consagraram lâminas com água benta trazida das montanhas de Canaã. Guerreiros vestiram armaduras feitas de prata celeste. Estandartes com cruzes douradas tremulavam por toda a catedral como se uma guerra santa estivesse prestes a começar.

Aldric não dormia.

No topo da Torre de São Miguel, ele mantinha-se ajoelhado em oração silenciosa desde a noite anterior. Não havia comido, nem bebido. E ainda assim, estava mais forte do que nunca.

— Senhor — murmurou, os olhos fechados — conceda-me força para esmagar a semente do abismo. Antes que floresça.

Uma luz sutil desceu sobre ele. Não uma visão. Não uma voz. Mas uma resposta silenciosa. A certeza de que sua missão era justa.

O Cardeal-Mor subiu com dificuldade os degraus da torre, quase sem fôlego.

— Redentor… o povo implora por sua bênção.

Aldric levantou-se. Sua simples presença exalava pureza. Aqueles que o viam acreditavam que ele havia nascido dos próprios céus — que seus passos eram guiados por anjos, que seus olhos viam o pecado em cada alma.

Mas no fundo, Aldric conhecia uma verdade amarga:

Nem toda luz é misericórdia.

De volta ao deserto, Lucien saiu da tumba com passos lentos. O céu ainda estava sem estrelas, como se tivesse vergonha de observá-lo. Mas havia algo novo em seus sentidos: presenças.

Ele não sabia como, mas podia sentir formas distantes. Guerreiros marchando. Homens carregando fé como lanças. E no centro… uma luz insuportável.

— Aldric... — sussurrou, reconhecendo o nome mesmo sem nunca tê-lo ouvido.

Foi então que algo se aproximou pela areia. Um vulto encapuzado, com vestes esfarrapadas e uma expressão oculta sob sombras vivas.

— Finalmente, encontrei você — disse a figura. Sua voz era seca, como vento rasgando pergaminho. — O escolhido de Mal’kareth.

Lucien recuou, mas o homem ergueu as mãos em paz.

— Não tema. Eu sou o Primeiro Esquecido. O último sacerdote de um deus morto. Eu vim oferecer… orientação.

Lucien o encarou em silêncio.

— E por que eu confiaria em alguém que se esconde até mesmo do próprio rosto?

O homem riu, rouco.

— Porque você já está marcado. E o que vem agora… exige preparo. Aldric está a caminho. E ele não virá com palavras. Virá com fogo e bênção.

Lucien sentiu algo vibrar dentro do peito. Não era medo. Era... antecipação.

— Então você veio me treinar?

— Treinar? Não. O que carrega não pode ser domado. Só pode ser libertado.

O homem estendeu uma pequena caixa feita de ossos trançados. Dentro, havia uma pedra pulsante, escura como breu, mas viva como um coração.

— Toque-a — disse ele.

Lucien hesitou. Sabia que, uma vez feito, não haveria retorno. Mas o mundo nunca lhe deu escolha.

Ele tocou.

O deserto inteiro estremeceu.

Em Heliópolis, Aldric parou subitamente. O chão sob seus pés sussurrou um nome proibido. Os sinos começaram a tocar sozinhos novamente. Uma pomba caiu morta do céu.

O Redentor apertou a cruz que carregava no peito.

— Ele respondeu.

Na tumba quebrada, Lucien arfava em dor. A pedra havia se fundido à sua mão. As marcas negras agora subiam por seu braço como chamas invertidas. Mas ele não gritou.

Pela primeira vez... sentia-se inteiro.

O Primeiro Esquecido sorriu.

— Quando os céus olham para outro… eles esquecem os próprios favoritos. Os olhos dos deuses… agora estão em você.

Lucien levantou-se.

— Então que eles vejam. Porque eu… vou queimar os tronos do céu.

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