Capítulo 1 - Segunda-feira com cheiro de terra molhada

O despertador tocou às 6h15, mas David já estava acordado.

Não por ansiedade, nem por dever. Era hábito. Seu corpo aprendera a despertar antes da hora, como se o silêncio da manhã fosse o único lugar onde ele cabia inteiro.

Ficou deitado alguns minutos, ouvindo o barulho da chuva fina batendo no telhado. A cidade ainda dormia. Ele não.

Levantou-se devagar, atravessou o chão frio da casa de um quarto e meia sala. Alongou os braços, girou os ombros. Dez flexões, vinte agachamentos. Um minuto de silêncio total.

Foi até a janela e abriu. O cheiro de terra molhada subiu como uma lembrança involuntária. Um cheiro antigo. Familiar.

Do tipo que traz vozes que não se ouve mais.

Na cozinha, preparou o café com precisão automática: três colheres rasas de pó, água quente — sem ferver — e o mesmo copo de vidro lascado na borda.

Enquanto a água passava, regou suas plantas da estante. Uma folha nova nascia no antúrio.

David sorriu. Pequeno. Só ele viu.

Sentou-se à mesa, olhou o celular, não abriu mensagens. Tomou o café devagar, como se cada gole adiasse o peso do dia.

> “O silêncio é confortável quando não vem acompanhado de ausência”, ele pensou.

Mas ali, sempre vinha.

Vestiu-se com uma camiseta escura e calça jeans. No espelho, encarou seu rosto: comum, como sempre. Nem bonito, nem feio. Apenas... ele.

Pegou a mochila, trancou a porta, saiu.

A rua ainda úmida refletia a cidade com um cinza macio.

No ônibus, olhou pela janela. Pessoas. Telhados. Postes. Tudo se repetia com a mesma precisão indiferente.

> Às vezes, David sentia que o mundo continuava girando mesmo quando ele parava. E isso o cansava de um jeito difícil de explicar.

Chegou à agência pouco antes das nove. Ninguém reparou sua entrada. Ligou o computador, conectou os fones — sem música — e abriu o primeiro e-mail.

Na mesa ao lado, Clara já estava sentada. Livro nas mãos, caneta vermelha entre os dedos.

Ela olhou de relance.

— Sua meia tá trocada.

David olhou para os pés. Azul escuro e preta.

— É — disse. — Esqueci de olhar.

Clara não riu. Só voltou ao livro.

> E talvez, naquele momento, algo dentro dele tenha lembrado o que era ser visto.