Era fim de tarde quando David encontrou a caixa.
Estava reorganizando a prateleira da estante, procurando um lugar melhor para a samambaia que crescera mais rápido do que ele esperava, quando viu, enfiada entre livros antigos e papéis dobrados, uma caixa de papelão com fita gasta nas bordas.
Não se lembrava da última vez que a abrira.
Sentou-se no chão, de pernas cruzadas, e abriu com cuidado.
Dentro, coisas esquecidas: uma medalha de corrida escolar, um chaveiro que ganhara de um dos irmãos, uma carta amarelada que ele mesmo escrevera e nunca enviara.
E, por baixo de tudo, uma foto amassada.
Era ele com os irmãos, no quintal da casa do pai.
Todos pequenos. Todos rindo.
E ao fundo, seu pai em pé, expressão séria, mas com os olhos… quentes.
David passou os dedos sobre o papel.
Respirou fundo.
E ali, sentado no chão da própria casa, sentiu a lembrança engolir o presente por um instante.
A chuva caía lá fora, e a memória veio com ela.
> O chão molhado da varanda. O pai chamando para pegar as roupas do varal.
O cheiro de álcool misturado ao amaciante.
O som da porta batendo com força.
E ele, com oito anos, tentando manter tudo em ordem.
Segurando o irmão no colo, respondendo lição de casa, lavando louça.
Pensando: “se eu fizer tudo certo, ninguém vai brigar.”
Aos dez, já sabia como esconder o choro.
Aos doze, já pedia silêncio com os olhos.
Aos quatorze, já tinha esquecido como era ser criança.
Ele segurou a foto com mais força.
Depois a colocou sobre a mesa.
Levantou-se, foi até a cozinha, ligou o fogo.
Colocou água para o café. Não para distrair — para acolher.
Enquanto esperava ferver, escreveu no bloco de notas:
> “Tem lembranças que doem sem avisar.
Elas não batem na porta.
Elas têm cópia da chave.”
Tomou o café em silêncio.
Olhou pela janela.
A cidade seguia lá fora, apressada. Mas por dentro, ele estava parado. Ainda era o menino do quintal por um instante.
Quando a chuva cessou, pegou a foto da mesa e colocou dentro de um envelope novo.
Guardou na gaveta mais funda.
> Não para esquecer.
Mas porque algumas dores a gente não precisa ver sempre pra lembrar que elas ainda estão ali.