Era uma quarta-feira comum.
David saíra para comprar pão no fim da tarde, distraído com fones de ouvido e uma leve dor nas costas que insistia em visitá-lo nos dias mais nublados.
A fila da padaria estava longa. Ele pegou o celular e começou a responder algumas mensagens atrasadas de Clara e Lucas.
Quando finalmente avançou para o balcão, ouviu uma voz atrás dele — familiar demais.
— David?
O tempo congelou por um instante.
A voz era a mesma, mas mais grave. O tom, igual ao das tardes de infância.
Virou-se devagar.
Daniel.
Estava ali. Cabelos mais curtos, barba por fazer, uma expressão que mesclava surpresa e um leve constrangimento.
Carregava uma criança nos ombros — devia ter uns quatro anos, olhos castanhos vivos e uma risada solta.
David sorriu de leve, contido.
— Oi, Daniel.
— Cara… faz quanto tempo?
— Uns nove anos, talvez.
— Caramba… você tá igual. Só menos magricelo.
David riu com um canto da boca.
— E você tá mais pai de família do que eu imaginava.
Daniel sorriu, ajeitando a criança nas costas.
— Esse aqui é o João. Meu filho mais velho.
— Prazer, João — disse David, acenando.
A criança sorriu e se escondeu no ombro do pai.
Daniel abaixou um pouco o tom.
— Desculpa aparecer assim. Eu... reconheci você de costas. Foi estranho, tipo... um filme voltando.
— Também senti. Mas tô bem. E você?
Daniel hesitou.
— Tô... levando. Vida corrida. Casado, dois filhos. Você sabe como é. Quer dizer... talvez não saiba. — Ele riu, meio sem jeito.
David não se incomodou. Apenas olhou com gentileza.
— Tô bem também.
A atendente os chamou. Pediram os pães quase ao mesmo tempo.
Quando saíram da padaria, caminharam lado a lado por alguns metros.
— Você mora por aqui? — perguntou Daniel.
— Sim. Sozinho.
— Legal. Eu tô na casa dos meus sogros por enquanto. A gente se mudou pra cá faz uns meses.
David assentiu.
A conversa parecia se esgotar, mas os dois não queriam quebrá-la com um "tchau" tão seco.
Daniel arriscou:
— Você... lembra das noites que a gente ficava sentado na calçada até tarde? Contando história de terror e morrendo de medo de olhar pra trás?
David riu com mais força agora.
— Claro. Você inventava umas histórias absurdas só pra me assustar. E depois dizia que ouvia passos quando ninguém tava passando.
— E você ainda me fazia companhia mesmo assim. Isso que era amizade.
Ficaram em silêncio mais um pouco.
Até que Daniel estendeu a mão.
— Foi bom te ver, de verdade.
— Também achei.
— Se quiser tomar um café um dia... a gente se atualiza melhor.
David assentiu, mas não prometeu.
Apenas sorriu.
Daniel se afastou com o filho no colo.
David ficou parado por alguns segundos, olhando o céu que escurecia devagar.
Não doeu.
Mas mexeu.
Como reencontrar um livro que já leu inteiro e lembrar da parte em que você quase chorou — mas não chorou.
Porque hoje... já é outro leitor.