David passou o resto da noite quieto.
Não triste — só... em suspensão.
Deixou o pão na mesa, tirou os sapatos e sentou-se no sofá com a luz apagada.
Do lado de fora, os faróis dos carros piscavam nas paredes como fantasmas modernos.
Na mente, o rosto de Daniel.
Não era saudade.
Não era desejo.
Era um reconhecimento profundo — como reencontrar uma versão antiga de si mesmo, viva nos olhos de outro.
> “Você ainda me fazia companhia mesmo assim. Isso que era amizade.”
David lembrou da calçada da casa do pai.
Das noites frias, dos dois sentados no cimento, contando histórias assustadoras e fingindo que não tinham medo.
E depois, entrando devagar para não acordar os irmãos, rindo baixinho como se o riso fosse proibido.
Pegou o caderno no armário. Aquele de capa preta que quase nunca usava, exceto quando algo realmente precisava sair.
Escreveu:
> “Hoje vi um espelho antigo andando pela rua.
Ele ainda me reconheceu, mesmo com os cacos colados de outro jeito.
E eu também o reconheci.
Mas não senti vontade de me ver ali.”
Fechou o caderno.
Respirou fundo.
No dia seguinte, foi até a pequena floricultura do bairro.
Comprou duas mudas de lavanda e uma de manjericão.
Quando voltou, foi direto até a casa de dona Irene.
Ela abriu com seu sorriso habitual e um pano de prato no ombro.
— Achei que ia demorar mais a voltar.
— Achei que ia demorar mais a precisar.
Ela entendeu sem perguntar.
Sentaram-se no quintal, entre os vasos e os passarinhos.
— Revi um amigo antigo ontem — disse ele, depois de um tempo.
— Antigo como?
— Daqueles que sabiam da minha vida antes de eu saber dela.
Ela sorriu.
— E o que ele te trouxe?
— Um espelho. Mas eu não quis entrar de novo na imagem.
— Então você tá pronto pra construir uma nova — disse dona Irene, regando uma planta com paciência.
David assentiu.
E naquele momento, sem perceber, a imagem dentro dele começou a mudar.