Capítulo 3 – A voz que ainda escolhe ficar

— Ai, obrigada, meu filho — respondeu ela, rindo com nervosismo. — Esses ônibus parecem que querem nos jogar fora.

David olhou para as duas sacolas pesadas nas mãos dela. Pareciam de feira — verduras, talvez algumas raízes, o volume irregular.

— Vai descer aqui? — ele perguntou.

— É... uma quadra e meia pra cima.

Houve um breve silêncio. Então ele completou:

— Posso te ajudar com as sacolas, se quiser.

A senhora o encarou por um segundo. Não com desconfiança — com surpresa. Como quem encontra gentileza onde já não esperava mais.

— Não vai te atrapalhar?

David apenas negou com a cabeça.

— Tenho tempo.

Desceram juntos. A calçada ainda estava molhada da chuva da manhã, e a senhora — dona Irene, como logo se apresentou — andava devagar, com passos curtos e firmes.

— Faz tempo que não aceito ajuda de ninguém — ela comentou. — Mas confiei no seu olhar.

David sorriu de leve.

— Às vezes, o olhar fala mais que a boca.

— Isso é verdade. Você tem cara de quem escuta.

Ele apenas assentiu.

O caminho até a casa dela era simples, arborizado, com poucas casas geminadas. Uma delas tinha um portão de ferro antigo e samambaias penduradas. Irene abriu o portão com a chave escondida na bolsa e empurrou devagar com o ombro.

— Quer entrar pra tomar uma água?

— Não precisa — disse David, educadamente. — Já ajudou bastante só me deixando carregar.

Ela riu.

— Você é desses raros, né? Os que ajudam e depois somem. Mas eu sou teimosa: não deixo sumirem fácil assim.

David parou no degrau. Pensou em recusar outra vez, mas havia algo naquele quintal — talvez o cheiro de hortelã, talvez a madeira gasta da porta — que o fez aceitar.

— Só um copo d’água, então.

Dentro da casa, tudo era simples, limpo, quieto. Havia uma cadeira de balanço perto da janela, um rádio antigo desligado, uma chaleira sobre o fogão.

— Fico sozinha a maior parte do tempo — ela disse, servindo a água. — As netas vêm quando podem. Os vizinhos... já não são como antes.

David sentou-se à mesa sem dizer muito.

Escutava como quem aprendia.

Ela falou de quando era professora, de como adorava lírios, de que estava aprendendo a cozinhar só para um.

— Dói mais na hora de arrumar a mesa. Sempre parece que falta alguém.

David olhou para a toalha quadriculada e a jarra de vidro ao centro.

— Às vezes eu também sinto isso. Mesmo morando sozinho desde os vinte.

Ela o encarou com um sorriso manso.

— E quantos anos tem agora?

— Vinte e três.

— Muito moço pra tanta quietude.

David abaixou os olhos.

—Acho que a quietude chegou antes da idade.

Dona Irene suspirou. Depois disse:

— Passa aqui outro dia. Não precisa trazer nada. Só você já basta.

David se despediu com um aceno leve, recusando o bolo que ela insistiu em embalar.

Caminhou de volta com passos lentos, mas não pesados.

A cidade parecia mais morna.

Menos indiferente.

> Às vezes, o dia não muda porque algo acontece.

Muda porque alguém olha pra você como quem vê, sem pressa, sem pergunta.

E fica.