A tarde passou sem sobressaltos.
E-mails, ajustes de cor, troca de mensagens com o cliente. A rotina habitual da agência tinha um ritmo previsível, quase anestésico.
David gostava disso. Da previsibilidade. Do controle silencioso.
Mas, naquela quinta-feira, algo o fez fechar o notebook um pouco antes do fim do expediente.
Levantou os olhos e viu Lucas, ainda na mesa ao lado, testando filtros no Illustrator com uma expressão de quem falava com a tela.
— Essa fonte parece um grito de socorro — murmurou Lucas.
David sorriu de leve.
— Então muda antes que ela chame a polícia tipográfica.
Lucas se virou de repente, animado.
— Você tem senso de humor! Eu sabia! Sabia que um dia ia ouvir isso.
David balançou a cabeça, disfarçando o riso.
— Foi só hoje.
— Mas foi — respondeu Lucas, triunfante.
Ficaram em silêncio por alguns segundos. A luz do fim de tarde entrava pelas janelas do prédio com um tom dourado. O som distante de buzinas e passos misturava-se ao ruído dos ventiladores.
Lucas se levantou e apoiou os braços no encosto da cadeira de David.
— Vai direto pra casa hoje?
— Vou sim.
— Quer companhia até a estação?
David hesitou.
Mas algo nele cedeu.
— Pode ser.
Desceram juntos, sem pressa. A rua estava úmida do sereno do fim do dia, e o céu começava a escurecer.
— Você sempre foi assim quieto? — perguntou Lucas.
David pensou um pouco.
— Nem sempre. Quando era mais novo, falava mais. Meus amigos diziam que eu era "o calmo que escuta". Hoje, acho que virei só "o que escuta".
Lucas olhou pra ele com uma expressão mais séria.
— Não vejo nada de errado nisso.
— Às vezes... eu também não. Às vezes vejo.
Caminharam mais alguns metros em silêncio. Até que, sem pensar muito, David disse:
— Ontem ajudei uma senhora no ônibus. Dona Irene. Caiu quase com as sacolas. Levei até a casa dela.
Lucas o olhou de lado, com surpresa boa.
— Sério? Que legal. E como foi?
David deu de ombros.
— Ela me ofereceu água. Contou umas coisas. Tem samambaias no quintal. Me chamou pra voltar outro dia.
— Você vai?
David demorou para responder.
— Acho que sim.
— Você gostou dela?
— Me senti... visto. Sem precisar falar demais.
Lucas assentiu.
— Essas são as melhores pessoas.
Chegaram ao portão do metrô.
Lucas estendeu a mão, quase como brincadeira.
— Obrigado por essa conversa histórica. Vai pro meu top 5 do mês.
David apertou a mão dele. Firme. Sincero.
— Foi bom. De verdade.
Lucas sorriu e entrou.
David ficou parado por um instante, observando as luzes da estação acenderem.
> Às vezes, o mundo não muda.
Mas se alguém te escuta sem te empurrar... parece mais fácil continuar.