Na manhã de sábado, David acordou antes do despertador.
Não era cedo demais, nem tarde. Era o tempo certo — aquele que chega quando o corpo está em paz.
Preparou o café sem pressa. Regou as plantas da varanda. Passou a mão nas folhas do antúrio, que seguia abrindo uma nova curva verde.
Lembrou-se da samambaia de dona Irene.
E pensou: “Acho que vou passar lá.”
Vestiu uma camiseta clara, calça leve. Saiu sem avisar, como quem não espera nada, mas deseja encontrar algo que não sabe nomear.
A rua estava calma. O sol ainda filtrava pelas folhas altas.
Quando chegou ao portão, bateu palma de leve.
— Dona Irene?
A janela se abriu, e o rosto dela surgiu, iluminado pelo susto bom.
— David? Meu filho, entre. Achei que era só uma visita única. Que bom que não foi.
O portão destrancou com facilidade.
David entrou devagar.
— Pensei na senhora esses dias. Trouxe pão de queijo.
— Melhor ainda. Tenho café passado — respondeu ela, sorrindo.
Sentaram-se na cozinha. A mesa quadriculada, a jarra de vidro, tudo igual. Mas a presença de David ali dava um novo tom ao ambiente.
Silêncio confortável.
— E o trabalho? — ela perguntou.
— Tranquilo. Um pouco mecânico às vezes, mas… estável.
— Às vezes, estável é o que salva.
Tomaram o café em silêncio por um tempo.
Depois ela falou:
— Sabe, ontem olhei pro portão e me peguei esperando você passar. Isso acontece quando a gente começa a gostar da presença de alguém. A gente espera... mesmo sem marcar.
David não soube o que dizer. Mas não se encolheu.
Apenas abaixou os olhos, como quem recebe um elogio sem precisar retribuir com palavras.
— A senhora mora aqui há muito tempo? — perguntou.
— Desde que me aposentei. Era a casa da minha mãe. Depois ficou minha. Já vi muita gente ir embora dessa rua.
— E os que ficam?
— Os que ficam viram parte da paisagem. Mas, de vez em quando, aparece alguém que vira parte da casa.
Ela olhou para ele com ternura discreta.
— Acho que você é desses.
David sentiu um nó manso na garganta.
Não era dor. Era reconhecimento.
— Eu gosto daqui. Gosto de ouvir a senhora falar.
— Você me ouve como se eu ainda importasse.
— A senhora importa.
Ela sorriu com os olhos.
— Já pensou em escrever?
David hesitou.
— Já... mas nunca levei a sério.
— Talvez porque nunca teve alguém dizendo que o que você pensa vale ser lido.
Ele não respondeu. Apenas olhou para a janela, onde a cortina dançava com o vento.
> Pela primeira vez em muito tempo, sentiu vontade de escrever sem esconder o que sente.
Não para os outros. Para ele mesmo.
Antes de ir embora, dona Irene o acompanhou até o portão.
Na calçada, ela apontou para uma muda de planta num vaso pequeno.
— Leva essa aqui. É da mesma espécie da minha samambaia. Assim uma parte daqui vai com você.
David pegou o vaso como se segurasse algo frágil demais para o mundo.
— Obrigado.
— Só me promete uma coisa?
— Claro.
— Não desaparece.
Ele assentiu.
> E naquele sábado, David voltou pra casa com uma planta nova nas mãos —
e algo vivo dentro do peito que não sabia mais nomear como silêncio.